
“Pois a música produz alienação: ela me faz sair do meu mundo medíocre e entrar num outro, de beleza e formas perfeitas. Nesse outro mundo eu me liberto da pequenez e picuinhas do meu cotidiano e experimento, ainda que momentaneamente, uma felicidade divina.” Rubem Alves – Palavras para Desatar Nós.
Este é um dos textos que mais expressa a minha relação com a música. Não foi por acaso que decidi começar a escrever justamente sobre a Associação Solidariedade Sempre, que atende 64 crianças entre 10 e 16 anos que vivem em situação vulnerável na região metropolitana de Londrina/PR, e usa a música como uma das ferramentas para solidificar valores.
Além de aprenderem a tocar os instrumentos, as crianças têm aulas de teoria e solfejo musical, aprendem as partituras e criam seus próprios arranjos, momento onde a imaginação e criatividade ganham asas. Elas também participam de atividades pedagógicas, dinâmicas de grupo e palestras com temas focados em cidadania.
Até o ano passado havia uma orquestra composta por 32 participantes. Este ano, são apenas 8. A queda no número de membros ocorreu porque, à medida que as crianças crescem e evoluem no aprendizado, são cobradas por suas famílias a ajudarem em casa. Como o projeto não oferece nenhum tipo de bolsa, mesmo os que se identificam com os instrumentos, são obrigados a deixá-lo para dedicaram-se a atividades que contribua com o aumento da renda familiar.
Quando fui conhecer o projeto, tinha uma lista – produzida mentalmente – sobre todos os benefícios em se educar com música: desenvolvimento do raciocínio, do autocontrole, auto-estima, estímulo da criatividade e blá, blá, blá… E era por isso que considerava tão importantes projetos que utilizassem música na proposta pedagógica.
“A música não é boa para nada”, disse Flávio Collins Costa – educador do projeto e membro da Orquestra da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
“Como assim?”, pensei comigo mesma na minha santa ignorância.
“A música não é e não deve ser usada como mais uma ferramenta, entre tantas, para formar pessoas para o mercado de trabalho. Tudo hoje é ferramenta para formar para o mercado, tudo o que fazemos tem que ser bom para alguma coisa, não podemos mais fazer algo por fazer, até o ócio deve ser produtivo” – complementou.
Ele me instiga a pensar no sistema que vivemos, onde nos preparamos para sermos mera mercadoria de troca.
Trabalhamos oito horas por dia, descansamos para trabalhar mais, tiramos férias para recarregar as “baterias”. Mesmo com tanta tecnologia, trabalhamos cada vez mais. E em que momento vivemos?
Flávio também critica a apologia que se faz atualmente ao uso da música na educação. Sabe aquela minha listinha de benefícios?
Para ele, uma das maiores contribuições da música para a vida destas crianças é mostrar a elas a força interior de cada uma:
A música exige muita disciplina para conseguir progressos. As crianças são desafiadas diariamente e descobrem potencialidades que já mais imaginariam ter. À medida que progridem, vencem obstáculos e aí vem a força interior que com certeza será usada em todos os aspectos de suas vidas.
Outro ponto importante que considera é o fato da música ser de quem a faz:
Enquanto estamos aqui, construímos um momento só nosso, que ninguém pode nos tirar. A música é lúdica, é diversão, é arte. Por ser arte, é sublime.
As últimas palavras desse educador, que me ensinou tanta coisa em uma breve conversa, me remetem mais uma vez a frase de Rubem Alves “(…) a música me liberta das picuinhas do meu cotidiano (…) e experimento, mesmo que momentaneamente, uma felicidade divina”. É…os sábios estão conectados.
Flávio insiste que não quer transformar nada nem ninguém, mas se entrega ao afirmar que a música humaniza!
Há efeito mais transformador na nossa sociedade tão primata, que vem achando normal prender e torturar quem roubou em um poste, do que a humanização? Essa vingança desmedida não deveria ser repudiada como a atitude de roubar? Será que não é exatamente disso que estamos precisando: formar seres verdadeiramente humanos?
Me desculpe Flávio, mas o trabalho de vocês é muito transformador, é impossível ficar indiferente a tanto conhecimento e ao amor com que realizam este trabalho.
Para mais informaçoes, acesse o site da Associação.