No caminho de volta para casa, depois de cumprir mais uma sessão de esportes diária, como num toque de mágica minha atenção foi larapiada por uma jovem quase desnuda, o que me fez, quase que por instinto, atravessar a rua desatentamente.
A suave agressividade da nada discreta buzina vindo do carro de um motorista que também estava distraído, dirigindo e teclando no celular, me despertou à consciência de meus sentidos de sobrevivência instantaneamente, dando assim passos acelerados para não entrar em mais uma das estatísticas de atropelamentos da cidade.
Isso tudo me fez chegar a um grupo de meninas que estava à minha frente, fiquei parado no semáforo meio que sorrateiramente. E elas reagiram prontamente à minha chegada, saindo disparadas, uma para cada lado, como o diabo foge da cruz. Por acidente uma delas tropeçou e caiu, se apavorou ainda mais. Mas face a minha reação imparcial perante ela as consequências se minimizaram.
Uma jovem senhora com aparência de aproximadamente 40 anos de idade acompanhou tudo a distância, ao se aproximar olhou para mim com um leve e tímido sorriso, e disse: “triste, mas deve estar habituado a este tipo de cena” e simpaticamente se virou seguindo seu rumo.
Em fração de minutos tinha esquecido tudo aquilo e fui para casa como se nada tivesse acontecido, afinal de contas, mesmo não tendo acontecido nada de especial no dia, a verdade era que também nada corria mal (como dito pelo Boss AC em uma de suas músicas). Horas se passaram até que amigos me convidaram para um happy hour e logo em seguida, uma balada.
Chegando na balada com meus amigos, cada um se destacou por suas qualidades: uns pela altura, outros pelos músculos e os mais vaidosos pelos trajes, mas todos chamavam a atenção pela “ousadia e alegria”.
Não demorou para tocar aquela música que faz todo mundo sair da cadeira e procurar parceiros para uma dança sensual. Nesta busca formigueira pelo noturno ritual de acasalamento, apareceu uma linda e simpática garota, acenou levemente para mim e foi o suficiente para me juntar a ela e ter 5 minutos, talvez nem isso, de uma boa dança. No final dei um beijo no rosto dela, aquele abraço apertado e agradeci pela honra.
Neste exato momento ela se mostrou mais interessada e começou a puxar assunto. De volta, como um toque de mágica, me dei conta que conhecia aqueles lindos olhos de cor confusa, em certos ângulos verdes e em outros azuis mas com certeza charmosos e cativantes, de uma atração única. Mas não conseguia me lembrar de onde.
Então aprofundei meu olhar naquele rosto marcante e perguntei para ela “já nos conhecemos?” Espantada, respondeu que não. Voltei a perguntar e meio confusa ela respondeu “acho que não”, novamente.
Sorriu e acrescentou: “adoraria ter te conhecido antes, mas como coisas boas demoram a chegar, estou te conhecendo no momento certo, no presente, que é mesmo um verdadeiro presente.”
Em meio a essas perguntas, ela disse que já voltava, precisava ir ao banheiro. Quando ela deu as costas, ficou claro para mim de onde conhecia aquele lindo par de olhos, de cor mística: eram da menina que caiu quando fugia de mim no semáforo da rua achando que eu era um assaltante em plena ação. Isso quebrou o clima e melou a noite.
Passou um tempo, ela voltou e trouxe junto aquela lembrança, que me deixou na dúvida “falo para ela de onde a conheço ou não?”
Bem, entre sorrisos sem palavras, coisa típica da paquera, não hesitei, sem ser grosso ou fazer ela se sentir constrangida, perguntei se por um acaso ela já foi assaltada nas ruas da cidade. Ela também foi bem direta: “graças a Deus nunca, mas hoje quase fui assaltada, cheguei a cair, mas o ladrão, não teve êxitos e o assalto não rolou, ficou apenas na tentativa”, respondeu aliviada e sorrindo.
Eu disse que entendia e acrescentei “a pessoa de quem você e outras meninas fugiram achando que era ladrão, era eu.” Não deu outra, a menina ficou vermelha de vergonha e desatou um tsunami de pedidos de desculpas e explicações, de que aquele lugar era uma área perigosa da cidade e que muitos dos negros lá são assaltantes e traficantes.
Seria trágico se não fosse cômico: de dia foge do negro como ratos fogem dos gatos e de noite se entrega por completo para um negro, como a Cinderela se entregou ao príncipe encantado. “Ah, vai entender”, pensei, mas não falei.
Apenas disse que já sabia que em áreas perigosas da cidade, eu (negro) representava perigo, ameaça eminente, mas que em zonas nobres representava a cultura pop, a miscigenação, a diversidade étnica.
Ela ia dizendo mais alguma coisa, mas a interrompi prontamente. Amenizei tudo, dizendo “relaxa, não é tua culpa”, e disse mais: “Vamos beber e curtir a noite” e a ainda ironizei “o importante é saúde”. Então propus um brinde. Lá se foram alguns anos desde que este fato aconteceu, mas a situação parece continuar.
Michael Moore tem razão quando diz que “o homem branco cometeu os piores e mais violentos crimes da história, mas de alguma forma eles conseguiram convencer o mundo de que os negros é que são a grande ameaça”.
E nos dias de hoje, ainda muitos negros vivem entre dois mundos. Um em que eles são os exóticos, a atração pop ou esporte e outro em que eles são culpados, até que se prove o contrário.
Mas o que você acha disso tudo? Compartilhe sua opinião e visão sobre o assunto. É sempre bom ouvir outros lados.
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