O mesmo samba que alegra nossas avenidas no carnaval de hoje em dia, teve como primeiro palco os quilombos do Brasil. Conhecido como um dos primeiros gêneros musicais tipicamente brasileiro, a origem do samba – na verdade – tem suas raízes em manifestações culturais que chegaram ao Brasil no triste período escravocrata que vivenciamos no país. Seu surgimento está nos batuques das pessoas pretas trazidas da África para cá, misturados a ritmos europeus, como a valsa, polca e minueto.
O local exato de sua origem é incerto, no entanto o berço mais popular repercutido entre estudiosos e amantes do ritmo aponta que o Recôncavo Baiano foi o primeiro lugar a ser prestigiado com os embalos do samba. Seu nascimento data do período colonial, como uma manifestação de resistência e de valorização da cultura e tradições africanas que cruzou o oceano no imaginário das pessoas pretas, e o ritmo é caracterizado pelos instrumentos de percussão – como o surdo, tambor, pandeiro e o timbau – acompanhados pelo cavaquinho e violão.
Logo após a abolição da escravidão (1888) e da proclamação da República no Brasil (1889), muitas pessoas pretas migraram para a então capital nacional – Rio de Janeiro – em busca de oportunidades de reconstruírem suas vidas como cidadãos livres. Mas o racismo que fazia parte da sociedade da época era ainda mais violento e disseminado do que os reflexos racistas que vivenciamos hoje em dia.
No Brasil do século XIX todas as manifestações culturais africanas (como o samba, capoeira e candomblé) eram vistas com desconfianças e criminalizadas. Este movimento de segregação motivou as pessoas pretas a realizarem suas festas e celebrações em lugares conhecidos como casas das “tias” ou “avós”, as verdadeiras matriarcas afro-descendentes que acolhiam a beleza dos batuques.
Popularização do samba
O samba se popularizou no país entre os séculos XIX e XX, principalmente nas regiões da Bahia e do Rio de Janeiro, lugares nos quais a presença das pessoas pretas era mais concentrada. Mas é importante destacar que a origem do samba carioca tem ligação direta com a migração das pessoas pretas para a região, que lá buscavam reproduzir seu ambiente cultural de origem, onde a religião, a culinária, as festas e o samba eram partes destacadas.
As famosas tias baianas, como tia Amélia, tia Perciliana e, sobretudo, tia Ciata, e seus filhos, Donga e João da Baiana, tiveram papel importante na fase pioneira do samba no Rio de Janeiro, principalmente até meados dos anos 1920. Inclusive, um marco importante para a popularização do ritmo foi que, em 1917, foi gravado em disco o primeiro samba, “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida. Aos poucos o ritmo chegava ao mercado fonográfico, até se popularizar com o surgimento do rádio e ser aceito pela classe média.
Ameaça à cultura do samba
Em contrapartida à sua popularização, nesta mesma época, o ritmo também sofreu com fortes ameaças de extinção. O principal marco que colocou em risco a existência do samba foi a estratégia de repreensão social posta em prática a partir de sancionada a Lei da Vadiagem (1941), que caracterizava a ociosidade como um tipo de crime e abria brechas para a prisão de pessoas que andassem nas ruas sem documentos.
Devido à marginalização das pessoas pretas neste momento da história, eram elas as principais vítimas da fiscalização e consequências praticadas a partir da lei. Afinal, como as rodas de samba já não eram vistas com bons olhos, munidos pelo artifício legal da Lei da Vadiagem as autoridades da época invadiam os espaços em que a música era tocada, sob pretexto de verificar a ocorrência da vadiagem, e a partir daí direcionavam represálias às pessoas presentes.
Outro ponto que afetava diretamente as pessoas pretas, é o fato de que muitas delas estavam desempregados, por vezes sem teto e sem nenhuma possibilidade de serem contratadas devido ao forte preconceito racial da época, e, portanto, realizavam rodas de sambas em dias e horários não convencionais para a realidade da época.
O racismo implícito à adesão do samba como manifestação cultural
Mesmo caracterizando-se como uma expressão de cultura e identidade das pessoas pretas que viviam no Brasil no início do século XX, o samba só passou a ser reconhecido e consumido pela maioria da população brasileira ao ser adotado por cantores e compositores brancos, como Ernesto Nazareth e Noel Rosa, em detrimento de nomes como o de Cartola – musicista preto que trazia em sua obra traços da própria cultura.
Só depois disso, o samba de Roda baiano continuou sendo uma das referências do samba nacional, presente nas obras de Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso, assim como na ala das baianas das escolas de samba e nas letras de inúmeros compositores de todo o País.
O samba é combate!
E não pontuamos estas questões para desmerecer o trabalho de nenhum talento citado. Trazemos estes fatos justamente para provocar a reflexão: por que uma manifestação cultural que tem ligação direta com a cultura negra só ganhou as rádios e foi reconhecida como patrimônio cultural nacional após ser repercutida por pessoas brancas?
É certo que o início do século passado ainda carregava uma carga de racismo muito mais intensa do que a que vivenciamos hoje em dia, mas o que não pode mais acontecer é negarmos os reflexos do racismo que permanecem assombrando as pessoas pretas ainda hoje. O que não pode mais acontecer é irmos às ruas para celebrar o carnaval, ao som do samba, sem considerar que em sua origem o ritmo foi marcado por muita resistência de uma população que foi trazida de sua terra para experimentar a realidade escrava em outro país.
Nós podemos sim aproveitar e valorizar o samba de agora. Mas a maior homenagem que podemos dedicar ao ritmo é reconhecer e repercutir sua real história. É lembrar de todas as tias e avós que receberam em seus terrenos as rodas de samba. De cada homem ou mulher preta que precisou ouvir o samba escondido para não ser perseguido. De cada escravo que encontrou nos batuques do samba uma forma de fugir da realidade de sofrimento a que eles era imposta.
Neste carnaval, sambe por você e por todas estas pessoas. E, sobretudo, sambe pela igualdade!