Sempre ficava lá, sentada num banquinho de madeira quando cansava ou quando o movimento estava parado. Ficava olhando através do vidro do balcão de frios aquelas pessoas passarem – aliás, um balcão velho, com taquinhos de madeira como suporte, todo descascado.
Eu via os reflexos e tudo mais. Quando tinha que ajudar no mercado da minha mãe, eram só aquelas pessoas engraçadas que alegravam o dia – as horas – o tempo que eu ficava ali. O tempo às vezes parecia que não passava – eu ficava lá olhando aquele relógio de parede de bordas brancas e com fundo de frutas. Fome realmente não dava. Dava sono. Muito sono.
Então, aquelas pessoas me alegravam. Era cada figura que por ali passava. Muitos passavam dançando, cantando – feliz com a vida e contando as moedinhas. Esses seguiam seu rumo e desciam para a quadra de baixo de onde eu ficava – nessa hora, eu já estava na porta do mercado – só observando. Aquela pessoa que passou e parou em meio a alguns meninos e meninas, entregou as moedas, recebeu um pacotinho e saiu mais feliz do que quando chegou.
Eu ali na porta só olhando. Ele passa e nem repara no quanto fiquei o observando. Era um cara de mais ou menos trinta e poucos anos, alto, magro, meio acabadinho, barba sem fazer, meio sujo, mas vivo – aliás, muito vivo. Acompanho seus passos até ele virar a quadra e sumir. Sumir, apenas, por aquele dia. Eu sabia que ele voltaria.
Como sempre eu ficava ali sentada no banquinho de madeira esperando todas aquelas pessoas passarem sorrindo e voltarem muito mais enérgicas do que antes. Chegar naquele ponto da quadra de baixo os faziam muito feliz. Parecia que tinham ganhado o dia.
E eu, ficava ali imaginando. O que eles fazem o dia inteiro? E porque aquele pacotinho que recebiam fazia eles sorrirem? Era engraçado, eu sabia o que era, sabia tudo. Mas sempre me questionei: como algo que é um monstro para a maioria da sociedade é simplesmente a alegria e a vida de outros?
Bom, em uma tarde eu não precisei ficar no mercado. Aproveitei para fazer um curso. Peguei meu carro. Um pegeout preto 2007 – meu xodó. Peguei a rua Conselheiro Laurindo. O semáforo ficou vermelho. Parei ali em frente ao posto de gasolina. Ali, um caminho que muitos usam para ir ao centro da cidade de Curitiba.
Estava distraída com a música alto no carro. Não lembro a música, mas certeza que era um pop rock. Quando uma pessoa bate sutilmente no vidro. Era um rapaz, com uma blusa retalhada, suja, muito velha, sem barba feita, cabeludo. Eu abaixei o vidro – muitos não fariam isso, ao contrário, levantariam. Mas, por onde ando sei que isso não adianta. Então, o jeito é olhar e atender.
Ele disse, “Pode me dar alguma moeda, pra eu comprar comida”. Pena, eu sou sustentada por meus pais, o dinheiro que tinha estava é com eles. Só olhei e falei, “Não”. O rapaz abaixou a cabeça e foi para o carro de trás. O semáforo ficou verde. Dei partida e segui rumo ao curso.
Mas no meio do caminho aquela cara abaixada e triste me deu um nó na garganta. E, em um relance, me lembrei daquele cara que passou contando as moedas indo para a quadra de baixo. Nem me toquei. O rapaz que tocou o vidro era aquele homem. Bom, continuei meu caminho.
No dia seguinte eu voltei para o mercado e novamente fiquei observando quem descia e quem subia aquela quadra. Só que claro, queria ver aquele cara pra tirar a prova. Era ele. Só que ele não apareceu por um bom tempo, ou eu não o vi. Mas muitos outros passarão por lá sem parar.
Numa tarde, fui fazer outro curso. Fiz o mesmo caminho. E não, ele não estava por lá. Aí você imagina e pensa muitas coisas. Será que aconteceu algo? Nem o conhecia, nunca falei com ele, mas como uma pessoa, sentia alguma coisa.
Pensava em todos que eu conhecia. Em todos que passaram por ali, muitos não voltavam, muitos sumiam. Esse mundo era meio complicado.
Bom, mas a vida continua. Certo dia, olha só, um rapaz entra no mercado, pega um yakult. Pergunta o preço. Paga e sai. Tudo super rápido. E sim, era ele. Aquele cara que passou um dia lá e ainda bateu no vidro do meu carro.
Só que ele estava com a barba feita, roupa limpa. Estava arrumado. E não acabado. Foi aí que pensei, “mas ele está tão arrumado, o que quer aqui?”. Logo nos dias seguintes, ele apareceu. Porém, já estava todo sujo, sem barba feita, roupa rasgada. Estava contando as moedinhas. Mas, desta vez, ele não estava sorrindo.
Estava com uma face triste, meio perturbado, perdido, sem rumo, sem chão. Uma pessoa que buscava a vida no lugar errado, mas que achava estar fazendo o certo. Não só ele, mas muitos. Depois de um tempo ficar sentada ali olhando aquelas pessoas sorrindo, contando as moedinhas passarem, já não me alegravam o dia. Eles estavam estragando o dia. E o pior: a vida deles.
A cada passo mais perto da quadra de baixo que eles chegavam, mais triste eu ficava. Pensava no quanto cada um deles deixou pra trás: trabalho, escola, universidade e família. Aquele cara que vi, imaginei, ele se acabou com aqueles pacotinhos que recebia. Por alguns dias eu não o vi. Deveria ter voltado a vida normal, mas acho que não aguentou. Porque voltou e depois se acabou de novo.
Nada mudou, ainda muitos passam por ali, e o pior, hoje os vejo muito mais pelos semáforos. E por incrível que pareça, sei exatamente o porquê pedem dinheiro. É para ficarem felizes e sair correndo por aquela rua e chegar cedo naquela quadra de baixo dos meninos e meninas.