Adoção, querendo ou não, ainda é um assunto sensível e pouco discutido no Brasil. Além disso, quem tem interesse em adotar, passa por questões burocráticas infinitas, enquanto a criança pula de instituição em instituição esperando um lar.
A procura é grande, mas as pessoas ainda querem um “padrão” de criança: de acordo com o Cadastro Nacional da Adoção, a preferência é por crianças de até dois anos (20,35% dos pretendentes), caindo drasticamente a opção por crianças acima de seis anos (3,80%). Além disso, constam no cadastro 5484 crianças para a adoção, sendo 47 de até 1 ano e 1221 entre 16 e 17 anos.
Mas tem gente mudando isso por aí. Eles são Toni Reis, David Ian Harrad e Alyson Miguel Harrad Reis, pessoas que superaram preconceitos e criaram um novo mundo juntos. Confira:
NC: Por que decidiram adotar?
Quando éramos jovens, e antes de nos conhecermos, nós dois tínhamos vontade de ter filhos, só que naquela época não parecia ser possível ter filhos por causa da nossa condição homossexual. Por volta do ano 2000, quando já estávamos juntos havia dez anos e a nossa relação estava consolidada, começamos a discutir sobre a possibilidade de adotar filhos. A ideia foi se amadurecendo e em 2005 demos entrada na Vara da Infância e Juventude como candidatos a adoção conjunta (os dois como pais dos filhos adotados).
NC: Como foi o início do processo, a aceitação das famílias, dos amigos e do próprio Alyson?
O processo demorou muito e tivemos que recorrer até a última instância, mas finalmente em 2011 conhecemos o Alyson e em julho de 2012 ele foi adotado formalmente por nós. Não temos vínculos fortes com nossas famílias. Depois da morte da mãe do Toni em 2003, o vínculo com a família dele se desfez. Meus irmãos moram na Inglaterra e tenho pouco contato com eles. Assim, a aceitação da família não entrou em jogo. Nossos amigos sabiam que queríamos adotar e aceitação foi boa. Alyson passou por vários abrigos mantidos por organizações evangélicas e também passou por uma família acolhedora que era Testemunha de Jeová. Assim, ele mesmo conta que nesses ambientes não havia aceitação da homossexualidade e ele assimilou este posicionamento. Nos demos bem desde o primeiro encontro com Alyson, mas na hora da juíza dar a guarda provisória dele para nós, ele mesmo falou que era uma decisão difícil vir morar conosco. No entanto, depois de estar convivendo no mesmo espaço conosco, não demorou para Alyson mudar de perspectiva e nos aceitar numa boa.
NC: Como o Alyson lida com isso hoje?
Alyson lida muito bem com isso hoje. Ele, assim como nós, entendeu que existe preconceito contra tudo que de alguma forma é considerado “diferente”, e que isso ocorre “solto” na escola, por exemplo, contra estudantes que são magros, gordos, altos, baixos, usam óculos etc. Alyson aprendeu a não dar bola para quem o “cutuca” porque tem dois pais gays, e percebe que quem se incomoda com isso geralmente tem algum problema mal resolvido em relação à própria sexualidade.
NC: Vi que ele já é engajado na luta e pretende continuar. Você pode falar um pouco do livro que ele escreveu?
Quando Alyson começou a ir para a escola depois de vir morar conosco, as professoras falaram que ele precisava de reforço de português. Assim, incentivamos a prática da leitura. Ele passou a ler três livros por mês e a fazer uma resenha de cada um. Ele posta as resenhas em seu blog “Resenhas de Miguel”. Depois de um ano e meio dessa rotina, ele disse que gostaria de escrever um livro em vez de ler os três livros por mês. Dito feito. No segundo semestre de 2013 ele escreveu o livro “Jamily, a holandesa negra: uma história de uma adoção homoafetiva”. É uma obra de ficção baseada na história de vida do Alyson, que traz uma mensagem sobre adoção tardia, adoção de crianças e adolescentes de raças e etnias diferentes e as diversas composições das famílias. Alyson tem muita facilidade para falar em público e já dá depoimentos em encontros sobre adoção, falando com naturalidade sobre adoção “tardia” e adoção por pais homoafetivos.
NC: Qual a dica que você dá para pessoas que querem adotar?
Nossa experiência (em relação à adoção “tardia”) tem sido que no processo de aproximação com a criança (ou adolescente) que está aguardando para ser adotada, é preciso ser muito franco consigo mesmo e com a criança. Se os santos não batem, é melhor não ir adiante com a adoção, para evitar a triste situação da devolução da criança depois. Afinal, há de se lembrar que o bem da criança deve vir acima de tudo, conforme estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente. É importante não idealizar e criar expectativas quanto ao filho que deseja ter. Com a chegada de mais duas crianças depois do Alyson, aprendemos que cada filho é diferente e tem suas próprias qualidades (e defeitos!) que devem ser incentivadas e desenvolvidas, independente de nossas expectativas.