Análise de conjuntura da situação da infância e adolescência no Brasil
A temática sobre Direitos da Infância tem ocupado espaço significativo nas mesas de debate em nossa sociedade e na medida em que garantimos a efetivação dos direitos estamos incluindo nesses debates as crianças e adolescentes que por direito devem participar da construção de programas e projetos que contribuam para a transformação da realidade da infância em nosso país.
Historicamente, temos as Normativas Internacionais que surgiram logo após a primeira guerra mundial, por meio de um processo de organizações que se solidarizaram com a realidade das crianças vitimas da guerra. Logo em 1923[1] surge a Primeira Declaração dos Direitos das Crianças, porém, a proteção aos direitos humanos das crianças só começou a ganhar força quando, em 1959, as Nações Unidas editaram a Declaração Universal dos Direitos da Criança, apresentando 10 princípios que defendem direitos especiais às crianças.
Passados 20 anos após esta declaração é que o mundo passou a realmente avaliar as condições da infância e dando-se conta que crianças ainda eram vítimas da violação do direito à vida, violação do direito pessoal e social, falta de acesso à educação, abuso sexual na família, maus tratos, discriminações, violência, entre outras. Isso provocou a ONU, para que em 1989 subscrevesse a Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, rompendo com a estrutura jurídica e institucional das legislações repressivas e assistencialistas.
Estatuto da Criança e do Adolescente
No Brasil, as normas aprovadas foram incorporadas pela Constituição Federal de 1988, reconhecendo a população infanto-juvenil não mais como objeto de tutela, mas como sujeitos cujos direitos devem ser garantidos em função de seu pleno desenvolvimento.
Com isso, exigiu-se a elaboração de uma lei que regulamentasse os direitos garantidos na Constituição, fundamentados na Doutrina Jurídica da Proteção Integral[2] consagrada na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito da Criança.
Então em 1990 é aprovada a Lei Federal 8.069/90, conhecida como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), substituindo o segundo Código de Menores e o assistencialismo vigente, por propostas socioeducativas. O “ECA” é a regulação num sentido amplo, do art. 227 da Constituição Federal, e a partir do estabelecido dessas normas gerais do Estatuto, em todos os ramos do Direito, em toda a ordem jurídica, a criança e o adolescente passaram a ser consideradas pessoas em condições especiais de desenvolvimento e, ao mesmo tempo, sujeitos de direitos.
Uma condição de vida degradante, ainda
Embora o avanço jurídico-formal e as mudanças inquestionáveis propostas pelo ECA, o cotidiano das crianças e adolescentes brasileiros continua severamente marcado pela degradante condição de vida: altos índices de desnutrição, analfabetismo, a não freqüência à escola, a exploração da mão de obra infantil, a violência (doméstica e urbana), a inserção no crime organizado, entre outros agravantes.
Para ilustrar essas informações tomamos alguns dados do Relatório da Situação da Infância e da Adolescência Brasileira 2009 do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF[3]:
- A taxa de mortalidade infantil é um dos indicadores que, ao ser considerado de maneira histórica, mostra os importantes avanços ocorridos. Usadas como indicadores básicos de desenvolvimento humano, a taxa de mortalidade infantil, número de crianças que morrem antes de completar 1 ano de vida para cada mil nascidos vivos, e a taxa de mortalidade de menores de 5 anos, também chamada de taxa de mortalidade na infância, revelam muito sobre as condições de vida e a assistência de saúde em um país.
- Em 1980, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), era de 82,8 por mil. Em 2004, ano da estimativa mais recente, chegou a 26,6. No período de 1994 a 2004, houve uma queda de 32,6%, chegando a 26,6 por mil nascidos vivos.
- No entanto, uma comparação feita pelo UNICEF em 2005 revelou que o Brasil tem a terceira maior taxa da América do Sul, atrás da Bolívia e da Guiana.
- Em termos geográficos, a Região Nordeste é a mais vulnerável do Brasil quanto à mortalidade infantil. Sua taxa equivale a mais que o dobro das taxas verificadas nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste.
- As taxas de mortalidade infantil diferem também dentro de uma mesma região, de acordo com o grupo social. Em nível nacional, a taxa relativa aos 20% mais pobres era mais que o dobro da taxa dos 20% mais ricos em 2000.
- A raça é outro fator determinante. Entre os filhos de mulheres brancas, em 2000, a taxa de mortalidade infantil era 39,7% menor que entre os filhos de mulheres negras e 75,6% menor que entre filhos de mulheres índias.
- Em toda a década de 1990, os acidentes e a violência, classificados internacionalmente como causas externas, destacaram-se como a principal causa de óbitos de crianças de até 9 anos de idade.
- De 1996 a 2003, eles foram responsáveis por 21,11% das mortes de meninos e meninas de 1 a 6 anos, segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.
- A desnutrição infantil é um problema de dimensões alarmantes em boa parte do mundo. Associada à pobreza e à desigualdade, é um expressivo fator de mortalidade de crianças nos países em desenvolvimento, apesar dos esforços realizados nas últimas décadas para reduzir esse índice.
- A proporção de crianças com baixo peso para a idade, principal indicador utilizado no Brasil, era de 18,4% em 1974, caiu para 7% em 1989 e chegou a 5,7% em 1996. Esta última porcentagem é muito menor que a média estimada pela OMS para a Ásia (32,8%) e a África (27,9%) na mesma época, e também menor que a média da América Latina (8,3%), porém é maior que os índices apresentados pelos países desenvolvidos, que são próximos de 1%.
- Um estudo mais recente, realizado pelo Ministério da Saúde e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), demonstra que a desnutrição infantil se mantém em queda no País nos primeiros anos desta década. O estudo utilizou dados do Sistema de Informação da Atenção Básica (Siab), desenvolvido pela área de informática do Ministério da Saúde. As informações referem-se à população atendida pelo Programa Agentes Comunitários de Saúde (Pacs) e pelo Programa Saúde da Família (PSF). Dentro desse universo, que corresponde a cerca de 40% da população brasileira, foram consideradas as crianças menores de 2 anos, que representam o grupo mais vulnerável à desnutrição. Entre 1999 e 2004, a porcentagem de crianças com baixo peso para a idade caiu de 10,1% para 3,6%, no primeiro ano de vida, e de 19,8% para 7,7%, no segundo ano.
- A diminuição do número de casos de desnutrição infantil não significa que o problema esteja sob controle no país. Um dos pontos que merecem atenção é a forma como os casos de desnutrição infantil estão distribuídos pelo país. Em 1996, segundo a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde (PNDS), o problema era mais sério no Nordeste e no Norte do Brasil. Na região do Semi-Árido, que abrange municípios de todos os Estados do Nordeste, além do norte de Minas Gerais e do Espírito Santo, a proporção de crianças menores de 2 anos desnutridas é quase quatro vezes maior que nos Estados do Sul. Há diferenças também conforme o local de moradia das famílias. Na PNDS, a porcentagem de crianças com baixo peso para a idade nas áreas rurais (9,2%) era o dobro da relativa às áreas urbanas (4,6%).
- Há uma década, creches e pré-escolas, então vinculadas à assistência social, foram oficialmente reconhecidas como um direito da criança: passaram a fazer parte da educação básica.
- Conforme a Síntese de Indicadores Sociais 2004 do IBGE, referente ao ano de 2003, apenas 11,7% das crianças de até 3 anos freqüentavam creches.
- De acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) relativos a 2004, e levando-se em conta a população segundo o Censo 2000, 55,1% das crianças de 4 a 6 anos estavam na pré-escola.
- Segundo a Síntese de Indicadores Sociais, dos 20% mais pobres do país apenas 28,9% de meninos e meninas de até 6 anos freqüentam estabelecimentos de ensino. Já no grupo dos 20% mais ricos, mais da metade das crianças dessa faixa etária está na escola.
- Quando se avalia a etnia, a mais prejudicada é a indígena. De acordo com os dados do censo, 3,9% das crianças indígenas na faixa etária de até 3 anos estão na escola. As crianças de origem asiática são as mais atendidas (15,2% do total de meninos e meninas dessa etnia). As discrepâncias entre as taxas de atendimento a brancos (10,3%), negros (9,5%) e pardos (8,3%) são menos significativas.
- Enquanto nas áreas urbanas 40% das crianças de até 6 anos freqüentam estabelecimentos de ensino, nas áreas rurais esse percentual é reduzido para 27%. Dados preliminares da Sinopse Estatística da Educação Básica 2004 mostram que o número de creches nas zonas rurais é insuficiente. Há 4.165 estabelecimentos, distribuídos em 5.560 municípios.
- As crianças com deficiência também estão em desvantagem. A lei garante que meninos e meninas com deficiência podem freqüentar a educação infantil regular. Do total de 109.596 em creches e pré-escolas em 2004, 78,2% vão para escolas especiais.
- A proporção de crianças sem registro de nascimento no Brasil é um problema que vem ganhando visibilidade desde a década de 1990, em debates e campanhas nacionais de conscientização. O grande número de crianças não registradas é um empecilho para conhecer a situação real da infância no país e criar ações e programas voltados para essa parcela da população. A falta do registro civil agrava ainda questões como o tráfico de crianças e o trabalho infantil, pois sem comprovação legal da existência de cada criança é mais difícil enfrentar esses problemas.
- Segundo estimativas do IBGE, com base em dados apurados até 2003, a cada ano quase 750 mil crianças brasileiras, mais de um quinto do total de recém-nascidos, completam o primeiro ano de vida sem ter sido registradas e sem ter um documento no qual conste seu nome e o nome de seus pais.
- De 1993 a 2003, conforme estimativas do IBGE, o sub-registro se manteve entre 20% e 30% no Brasil.
Modificações no Estatuto da Criança e Adolescente
É importante registrar, para fins desta análise que no ano de 2014, modificações significativas aconteceram no ECA:
- A lei 12.955 que passou a integrar o estatuto estabeleceu a prioridade nos processos de adoção em que o adotando for criança ou adolescente com deficiência ou doença crônica.
- Outra lei que passou a integrar o ECA é a Lei 12.962, que garante a convivência da criança e do adolescente com os pais privados de liberdade.
- A mais polêmica inclusão foi da Lei 13.010 que fortaleceu os Conselhos Tutelares ao impor o dever da relatar quando identificado sinais de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra crianças e adolescentes.
- Por último tivemos a inclusão da Lei 13.046 que obriga as entidades públicas e privadas a terem, em seu quadro funcional, técnicos capacitados para identificar e relatar maus-tratos de crianças e adolescentes, estabelecendo assim sistema que contribui com os eixos de observação e monitoramento de violações de direitos, previstos no ECA.
Esse quadro de profundas desigualdades sociais e econômicas configurado pela construção histórica da sociedade brasileira tem submetido crianças e adolescentes às condições precárias de vida em ambientes sociais e familiares muitas vezes desfavoráveis ao desenvolvimento pleno, à garantia de direitos e de vida em abundância.
[1] 1923: Eglantyne Jebb (1876-1928), fundadora da Save the Children, formula junto com a União Internacional de Auxílio à Criança a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, conhecida por Declaração de Genebra.
[2] Essa Doutrina é composta por 4 documentos de relevância internacional: Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing); Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad); Regras Mínimas das Nações Unidas para a proteção dos Jovens Privados de Liberdade e Convenção Internacional das nações Unidas sobre os Direitos da Criação (Convenção sobre os Direitos da Criança).