Vaticano, Roma, Itália. 03/03/2017
Apesar de ter estudado em escola de freira, ter sido catequisada, ter feito primeira comunhão, ter ajoelhado no milho na aula de religião (só porque perguntei se alguém tinha foto de Jesus para saber se ele tinha “cabelão” e olho azul), apesar de ter feito papel de Maria Mãe de Jesus (antes da pergunta) e de burrinho de presépio (depois da pergunta), o catolicismo não foi a religião que meu coração escolheu. Sim, é ele que escolhe. Mandão. Ainda assim, penso que esse Papa é bem “bacanudo” e dá uma “sambadinha” na cara dos católicos mais ortodoxos.
Desconstruir para construir
A lógica é quase sempre essa. Sem credo, seria pecado ir a Roma e não ir ao Vaticano, a história ali viva e ainda preservada, coisa que nós brasileiros aqui sabemos pouco: cuidar do passado.
“Ei, Papa, cadê você? Eu vim aqui só para te ver”. Mas tava difícil: média de espera de 3 horas para ver a Capela Sistina e a Basílica de São Pedro. Sem chance. Eis que, em uma “gugada” salva-vidas descubro que tem um ingresso com hora marcada, para passar na frente de todo mundo. É uma sacanagem organizada e, lógico, como em toda boa sacanagem, alguém tem que pagar. Como eu só tinha dois dias em Roma, topei. Dinheiro é para resolver problemas, ao invés de cria-los. Ou deveria ser.
Ao chegar na agência de turismo, pergunto se ainda tem ingresso para o próximo horário. Antes que o rapaz sorridente da foto respondesse, avisto seu crachá. O nome do cara era “Karamba”. Aí, lascou. Eu já comecei a cantar “Cara, Karamba, caraô”. E ri, sozinha. Mas riso é linguagem universal e Karamba sorriu largo, mesmo sem saber a música. Perguntou por que eu estava rindo e eu disse que, no Brasil, o nome dele fazia parte de uma música de carnaval. “Brasile? Amo o Brasil. Sou de Senegal”. Aí, lascou-se de novo. A playlist já puxou “Sené Sené Sené Sené Senegaaal! Sené Sené Sené Sené Senegaaal! ”. Você sai da Bahia, mas a Bahia não sai de você. Impressionante. É um estado outro, uma sensação, um quê de sei lá o quê, que não se explica. Você caminha para fora, achando que se afasta, mas uma hora você percebe que tá tudo ali, dentro de você. Há lugares que nunca saem de nós. Às vezes, uma praça, noutras, uma praia, uma nuca, um abraço.
Além de um dos sorrisos mais bonitos que vi por estas bandas, Karamba era um dos poucos negros que vi trabalhando dignamente na Itália. Os outros negros, eram mendigos, pedintes ou vendedores de drogas, artigos falsificados ou artesanatos nos subúrbios. Um deles, vindo da Costa do Marfim, viu minha cor de mingau de cremogema sabor baunilha e tentou me vender uma pulseira hippie com as cores do Olodum. Ai, lascou de novo. “Olodumn tá hippie, Olodum tá pop, Olodum tá reggae, Olodum tá rock, Olodum pirou de vez”. Sai, Bahia. Tô na Itália e quero cantar “Volare ô ô ô”. O vendedor de pulseirinha do Olodum se chamava Alex. Queria ser professor, mas estava tentando viver com o trabalho que arrumava, já estava em seu quarto país. A música agora era menos animada, “Exodus”, de Bob Marley.
Karamba ficava repetindo que era o diretor da agência de forma exaustiva. Era como se precisasse provar seu lugar, que não era um vendedor qualquer, um pedinte, um vendedor de miçanga, mais um refugiado, mais um ilegal, mais um número para engrossar o caldo. Eu perguntava quanto era um postal e ele repetia que era o diretor, em looping. Todo excesso revela uma falta e o que ele queria era ser reconhecido mesmo. Somente e tudo isso. O sorriso de Karamba trazia dor e esperança: pelo passado e pelo futuro, necessariamente nessa ordem. Karamba é a lei de cotas do Vaticano: enquanto a italiana que trabalhava com ele destilava seu mau humor sentada no banco confortável da certeza de que, em caso de demissão, provavelmente quem rodaria não seria ela, Karamba era “correria”. Com esse nome de interjeição, ele não podia negar a intensidade, afinal a única coisa morna que presta é banho.
“Está chegando a hora. É hora de partir. Me dá uma dor no peito. Ter que ir embora e deixar Karamba ali.” No grupo fura-fila-organizada das 13h, eram mais de 300 turistas do mundo todo para entrar na Capela Sistina e apenas uma negra. A única negra, simpática, cheia de estilo, cabelão lindo blackpower, uma calça de onça parecida com uma que eu tenho, um anelzão, colei logo nela. Sorrisão. Repito: riso é universal, “é a menor distância entre duas pessoas”, dizem. Mãe África é mãe de toda cor e de toda a alegria. Michelle nasceu no Gambia, mas morava na Suécia, casada com um sueco, cujo nome era Sasha. Tentei explicar que Sasha era a filha de Xuxa, mas ficou difícil de explicar a parte do pai de Sasha, aí desisti.
Michelle, como todo bom gringo, disse que queria ir pro Brasil conhecer o carnaval, já dei meu “zap”, já chamei para comer caranguejo e ir tomar banho de mar no porto. (Sai, Bahia). Falei também que estava nos meus planos conhecer a África, mas que não sabia quando blá blá blá. Michelle contou que ia voltar ao Gambia ainda esse ano para ver a mãe, que estava para completar 70 anos. A mãe de Michelle morava com ela na Suécia, mas voltou para o Gambia, construiu uma casa, achava que estava perto de morrer e não queria morrer longe da África. Mia Couto, no livro “Um Rio chamado Tempo e uma Casa chamada Terra”, conta que, em uma vila em Moçambique, as pessoas tiravam os telhados de suas casas quando estavam perto de morrer para que o espírito chegasse mais perto do céu. Agora deve ser bem difícil chegar ao céu. Nos prédios, essa coisa do telhado complica um pouco. Só por isso.
Perguntei a Michele como ela se sentia sendo a única negra a entrar na Capela Sistina naquele grupo. Como notar ausências é fácil, embora doloroso, ela já tinha notado a ausência de negros por ali. O único desejo dela era que todos os negros pudessem entrar na Capela Sistina. Jesus disse “Deixai vir a mim as criancinhas”. Os negros não, Jesus? Pensei. A Capela Sistina realmente é laica, é alucinógena. LSD em forma de teto. Sorrindo, ela me disse que achou estranho eu, branca, cor de mingau de cremogena sabor baunilha, ter notado a tal ausência.
Aí, falei que Salvador tinha 85% da população negra, que era a cidade mais negra fora da África, etc etc. Michelle ficou animada: “Então, lá é diferente daqui!? Os negros ocupam os espaços?”. Tive vergonha de dizer que não. Mas disse. A África está espalhada, se espremendo para ocupar espaços de dignidade, mas na Bahia ou na Itália, na Igreja do Bonfim ou na Capela Sistina, os negros estão do lado de fora, em subempregos, vendendo pulseiras ou fitinhas coloridas. Mudam-se as cidades e a história segue injusta: permanecem os rastros de escravidão estrutural, com senzalas renomeadas de subúrbios e favelas.
Na estação de trem, são os negros que atraem os olhares estranhos da polícia italiana com fuzil e pistola à mostra. Qualquer semelhança, não é mera coincidência. Jamais saberei o que os muitos Karamba’s, tantas Michelle’s ou tantos Alex’s sentem. Afinal, tudo isso eu falo assim, de fora, como se ousasse usufruir o direito de estar no quintal e dar pitaco na casa, no ilê (casa, em iorubá). Me perdoem o ranço histórico. “Quem dá luz a cego é bengala branca e Santa Luzia. Ai, ai, meu deus”. Há muitos segredos na panela que eu jamais saberei. “A panela do segredo” ou o “A gamela do feitiço”. Alguns entenderão.
Assim como nenhum homem saberá o que é ser mulher e ter medo de homem, eu reconheço o meu não-lugar, apesar da minha fé, da minha curiosidade, do muito que li, do pouco que eu sei. “Essa casa não é minha e não é meu esse lugar”. Falo de fora, de um lugar de fala que não é meu. Seria bem ridículo e hipócrita da minha parte não assumir o privilégio que é essa condição. Um privilégio histórico que não fui capaz de negar. E por não ter sido, observo e trisco, com suavidade e respeitoso silêncio, mas sem perder a chance de engrossar o coro de vozes silenciadas. Esse grito é também meu, humanamente meu. Vergonhas, coragens, humildades, aceitações, revoltas e ignorâncias. Sim, ignorâncias. Não sei e nunca saberei o que é ver alguém mudar de lado na calçada porque me viu. Somos feitos de amor e merda também.
Enquanto me despeço de Michelle, um bebê galeguinho dos olhos azuis olha pra gente e sorri. O cachorro abana o rabo querendo um pedaço do presunto de parma do sanduíche do marido de Michelle. Crianças e cachorros são legais em todo o mundo. Os seres humanos, nem sempre.
(Falei para Karamba ir para Bahia que a trilha sonora da vida dele está pronta. Mas, se caso forem a Roma, procurem o cara “Karamba caraô” e digam q foi uma menina (jovem) do Brasil que indicou.)