Conforme determina o artigo XXIII §1º da Declaração Universal: “Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”. Porém, para que o trabalho corresponda efetivamente à um direito humano, assim como afirma a declaração, é imprescindível assegurar uma série de condições aos trabalhadores. Não obstante as muitas convenções e legislações vigentes, sabe-se que a transição para uma sociedade de fato governada pelo Estado de Direito permaneceu incompleta. Mesmo com a incorporação das normas internacionais de direitos humanos pelo ordenamento jurídico nacional, o nível macro muitas vezes se revela ineficaz. Nesse sentido, mecanismos internos são formas de colocar em prática o que muitas vezes não passa de teoria.
Já que o tema é bem extenso e complexo, nessa matéria vamos continuar falando sobre o trabalho escravo e uma das principais fontes do país no assunto, a ONG Repórter Brasil. Por ser uma atividade clandestina, a mão de obra escrava é registrada somente através de fiscalizações. Logo, a sua visibilidade é essencial para a denúncia e indenização. Nesse sentindo, o trabalho da ONG é fundamental. Seu desempenho engloba também articulação política com o setor empresarial, a nível nacional e internacional, visando o compromisso das empresas em prol da causa. Um dos emblemas deste diálogo foi o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. O acordo, estipulado em 2005 entre empresas brasileiras e multinacionais, representou um marco importante. As partes se comprometeram em não comprar matéria prima cuja procedência fosse de mão de obra escrava.
A recente trajetória do combate ao crime apresenta inúmeras vitórias. A aprovação da PEC (proposta de emenda à Constituição) do trabalho escravo é uma delas, já que ocasiona a expropriação de propriedades onde forem constatadas prática de trabalho escravo ou situação análoga à escravidão. Com a emenda constitucional, tais imóveis serão atribuídos a programas de habitação popular ou à reforma agrária. A elaboração do 1° Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (2003) e a reformulação do artigo 149 do Código Penal também figuram o elenco. Este último estipulou o veto à “condição análoga à de escravo” e não apenas à “redução de alguém à escravidão”, conforme dispunha a cláusula de 1940. O documento, por sua vez, apresenta medidas de prevenção, assistência ao trabalhador resgatado e repressão ao delito.
Outro mecanismo fundamental foi a instituição do Cadastro de Empregadores da Portaria Interministerial. Criado em novembro de 2003 pelo governo federal, revelava o rol dos casos que apresentavam condições análogas à de trabalho escravo. A relação evidenciava empregadores que puderam usufruir da defesa administrativa em primeira e segunda instância e que ainda assim configuraram a categoria. No prazo de dois anos, período mínimo de permanência na lista, a empresa deveria executar as retificações necessárias para a regularização da sua situação com o poder público. No entanto, por pressão da ação de construtoras, o cadastro, conhecido como “lista suja”, foi suspenso no final do ano passado pelo STF. Mesmo diante a revogação da mesma a ONG não interrompeu a luta contra o trabalho escravo, e, amparada na Lei de Acesso à informação, solicitou ao Ministério do Trabalho e Emprego os dados das empresas autuadas por desfrutar de mão de obra análoga àquela escrava, obtendo um elenco aproximado ao original.
O Poder da Informação
Na maioria das vezes, os trabalhadores explorados não possuem discernimento dos próprios direitos. Sobretudo pelo fato de afrontarem repetidamente circunstâncias do gênero. O depoimento do Sr. Valdeni da Silva Medeiros confirma essa realidade:
Fui muito, muito escravizado na época. Mas eu não sabia. Pra mim, viver naquele tipo era a maneira que tinha que viver mesmo. Não tinha noção do trabalho escravo. Pra mim, era normal viver aquilo. (Pág 32 – Cartilha Repórter Brasil)
A partir deste testemunho fica evidente como a informação assume papel fundamental na luta contra o trabalho escravo. A este escopo, a ONG desenvolve programas educacionais e formações que favorecem a conscientização da comunidade e a decorrente prevenção do problema. A prevenção, junto à assistência à vítima e a repressão do crime constituem os pilares no combate ao trabalho escravo. Mediante a iniciativa “Escravo, nem pensar!!”, foram desenvolvidos 14 projetos comunitários, abrangendo sete estados brasileiros. No âmbito escolar, as questões foram tratadas por meio da elaboração de cartilhas educativas, que transparecem uma didática simples, interativa e eficiente. Já nas comunidades, foram efetuados programas de geração de renda, o que favorece a contenção do fenômeno de migração forçada e contribui para a estadia dos moradores em suas próprias terras. Além disso, tais medidas possibilitam a autonomia de ação e a mobilização dos próprios protagonistas, formando uma “rede de proteção ao trabalhador”.
Nova ameaça: a Lei da Terceirização
Apesar dos esforços de movimentos sociais e de sindicatos, o projeto de lei 4330/04 foi aprovado pela câmera e seguiu para votação no senado. Em oposição à proposta normativa, mobilizações populares entraram em cena em 18 estados brasileiros. O novo texto visa autorizar a terceirização em toda a cadeia produtiva, ou seja, em todas as atividades de uma empresa. Até então, somente aquelas secundárias, como a limpeza, podiam ser delegadas a outras firmas. Em outras palavras, a subcontratação de serviços seria permitida apenas nas denominadas atividades-meio, e não nas atividades– fim. Ou seja, a contratação de operários por uma indústria ou a de um professor por uma universidade particular não poderia ser terceirizada, enquanto serviços de limpeza e segurança sim.
Porque devemos nos preocupar com a mudança? A análise de Victor Araújo Figueiras, auditor fiscal do trabalho, nos ajuda a responder a pergunta. Uma lacuna imediata é a facilidade na evasão das leis trabalhistas. A terceirização possibilita redução de custos e representa um dos principais fatores que acarretam a deterioração das condições de trabalho. Sendo assim, incide diretamente no tema-chave da matéria: o trabalho escravo. Segundo os dados do Ministério do Trabalho e Emprego, aproximadamente 90% dos resgatados nos dez maiores flagras entre 2010 e 2014 eram terceirizados.
Ainda, de acordo com Marcela Soares, doutora em Serviço Social na Universidade Federal Fluminense (UFF), “a terceirização garante a pulverização da produção e a precarização das relações de trabalho”.
Fontes:
Congresso Nacional promulga PEC do trabalho escravo
Câmara conclui votação do projeto de terceirização
Pesquisadores reunidos em São Paulo apontam a relação entre trabalho escravo e terceirização