Saborear a textura das palavras pode ser transformador. A língua pode nos revolucionar, nos trans-revolucionar por dentro e isso se refletirá nos cenários sociais que vivemos. O alcance do sentimento de gratidão é ilimitado. Viver a partir desses referenciais ajuda a florejar internamente, a limpar nossos quartos internos que, por preguiça ou medo, costumamos deixar cheios de poeira e pouca luz.
Volto nossa atenção à gratidão, uma palavra luminosa e pouco utilizada no nosso dia. Ela deriva do latim “gratus” e significa “agradável”, “agradecido”, “elogiar, dar as boas-vindas”.
Assim, expressar gratidão significa dar as boas-vindas ao que nos ocorre no presente, sejam as situações agradáveis ou não, sejam os significados de desafios ou de tempestades. Gratidão é sair de nós mesmos, de nossos recuos internos e de nossas necessidades pessoais para se colocar à disposição das outras pessoas.
Estar grato constantemente é ainda reconhecer a impermanência das coisas (nada que temos vai durar a vida inteira) e reconhecer e gratificar o que temos hoje. E aqui entra novamente a importância do interior da palavra. Reconhecer é “tomar conhecimento, trazer à mente de novo”. Dessa forma, gratidão é uma maneira de trazermos à tona para a mente as qualidades positivas do presente.
Procuro sempre propor ao meu dia a dia algumas alternativas de estimular a gratidão de uma forma prática e as apresento a seguir. Vamos lá.
Gratidão de forma prática
A gratidão é um dos elementos que o budismo estimula nas pessoas que o praticam. Isso porque estamos interconectados com tudo. Somos interdependentes. Gosto da interpretação que o monge vietnamita e ativista de direitos humanos, Thich Nhat Hanh, dá para a expressão.
Ele está com 89 anos e, para você ter uma sutil noção de seu trabalho, ele foi nomeado ao Prêmio Nobel da Paz pelo ativista Martin Luther King. Se você quiser saber um pouco sobre os ensinamentos dele, sugiro o livro “Os monges e eu”, escrito por uma professora de yoga que passou 40 dias no mosteiro do monge, na França, que conta como esse retiro com Nhat Hanh a transformou.
Pois bem. Um exemplo de gratidão que costumamos não praticar: quantas vezes reverenciamos as refeições do dia a dia? Olhamos para o prato e nos sentimos efetivamente gratos ou gratas? E mais: quantas vezes estivemos realmente presentes ali, na refeição, saboreando cada garfada e agradecendo a todos os alimentos e pessoas responsáveis por aquela refeição estar ali disponível para você no prato? O WhatsApp não ajuda muito nisso.
Thich Nhat Hanh ensina no livro “Vivendo Buda, Vivendo Cristo” exatamente essa reflexão. Diz o mestre zen-budista:
Bebemos e comemos o tempo todo, mas geralmente só ingerimos nossas ideias, projetos, preocupações e ansiedade. Não comemos realmente nosso pão nem bebemos nossa bebida. Se nos permitirmos tocar profundamente nosso pão, renasceremos, porque nosso pão é a própria vida. Ao comê-lo profundamente, tocamos o sol, as nuvens, a terra e tudo no universo. Isso não exige nenhuma liturgia ou mesmo alguma oração específica antes de cada refeição. É apenas estar afável com o que se tem e pronto.
Agradecer o lixo na hora de colocar na lixeira é outra forma de exercitar a gratidão. Olhar a sacola e pensar: “puxa, quanta coisa aqui me fez bem, me alimentou”. E agradecer por aqueles alimentos que, de certa maneira, são parte de você agora.
Agradecer a natureza pelos nutrientes. Agradecer pelas pessoas que trabalharam nas indústrias para tornar possível que aquele alimento chegasse até sua casa. Agradecer ao repositor do supermercado por tê-lo colocado na prateleira. O sentimento de gratidão pode ser ilimitado.
Outra forma de estimular dentro de nós a gratidão é trocar o usual “obrigado” ou “obrigada” pela expressão “gratidão”. Faz diferença. Que sentido emitimos ao agradecer alguém dizendo obrigado? Pode fazer sentido apenas se algo ou alguém obrigou, de fato, aquela pessoa a realizar determinada ação por você.
No entanto, sinta a dimensão que o ato de dizer gratidão provoca: a própria palavra libera amarras porque exige uma flexibilidade mais sensível da língua e do aparelho fonador. Dizer obrigado é quase um trava-língua. Dizer gratidão estimula até mais todo o corpo.
É ainda gratidão oferecer nossa atenção a quem pede. Costumo pegar os papeizinhos que as pessoas entregam pelas ruas. Sei que elas agradecem. Não custa nada. Isso também é gratidão.
Ou, como escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade numa crônica publicada no final dos anos 1970, essa “reação em cadeia pode contribuir para amenizar um tanto o que eu chamo de desconcerto do mundo”.
Nesse mundo de conexões digitais onde andamos de cabeça baixa o tempo todo, escravos do digital, estar atento a alguém, ouvir alguém, não economizar atenção e olhar quando nos pedem é um ato de generosidade para com as pessoas.
Outro dia desses conversava com uma amiga que trabalha com compensação ambiental. Traduzindo: quando se precisa construir algo e árvores terão de ser cortadas, ela exige que a empresa plante novas mudas para compensar as que serão derrubadas. É lei. Quando isso ocorre, é importante agradecer o tempo em que a árvore existiu.
Importe (no sentido de trazer para dentro) isso para a sua vida: toda vez que precisar podar alguma folha de suas plantas, agradeça aquele ramo ou folha por ter sido generosa com você, ter ajudado a purificar o ar da sua casa ou trabalho, por ter feito companhia, por estar ali sem exigir nada troca, apenas um pouco de água e sol.
O mesmo raciocínio de gratidão pode ser aplicado à árvore que você pretende derrubar. Agradeça, seja grato a ela por ter feito parte de sua vida. A Mãe Terra sorrirá de volta.
Por fim, mas sem esgotar as inúmeras formas de praticar a gratidão, um ato de gratidão que talvez seja bem difícil de praticar: pensar na pessoa que mais a irrita e oferecer um abraço mental cheio de amor.
Claro que, no momento da raiva por determinado indivíduo, tudo o que você menos quer é dar um abraço. O ódio e raiva, às vezes, estará presente. Acalmar a respiração e abraçar o sentimento de raiva num gesto de compaixão com você mesmo ajuda a esvaziar o sentimento nocivo ao nosso templo interior.
Você pode, depois, se encher de um estado de amor e pensar nessa pessoa e dizer mentalmente algo como “você me irritou, mas agradeço a você por ter sido esse guia espiritual e possibilitar minha vivência nesse sentimento. Mas, agora, dou a você um abraço de muito amor para que possamos crescer”.
Não é mais prático e generoso conosco do que cultivar, na mente, um sentimento de ódio e ressentimento e conviver com eles o resto do dia?
Despertalar-se é ato de despetalar o despertar para a compaixão e o amor. Um meio para esse despertar é imagerminar as sementes da gratidão dentro de nós. Expus algumas imagerminações que costumo utilizar no meu dia a dia e desejo sinceramente que possam servir, de alguma maneira, para você.