O Cerrado, segundo maior bioma do país e berço de aquíferos responsáveis pela alimentação de importantes rios do continente, é também um dos mais ameaçados. Com sua configuração comprometida pelo agronegócio, uma das estratégias para mantê-lo de pé é o fomento aos negócios da sociobiodiversidade.
O que são negócios da sociobiodiversidade?
Chamamos assim os negócios que atuam e comercializam produtos das cadeias da biodiversidade brasileira, manejadas ancestralmente por comunidades e povos tradicionais. No Cerrado, se destacam a cadeia do baru, do capim dourado, pequi e do babaçu. Os quatro exemplos são justamente de cadeias predominantes no bioma.
Esses negócios são, ao mesmo tempo, atividade econômica e serviço ambiental, uma vez que o bioma conservado gera alternativa de renda e contribui para a diminuição dos impactos das mudanças climáticas. Além disso, na medida em que permitem às populações tradicionais se manterem em seu território, com as suas tradições, possui impacto social e cultural positivo.
Coco babaçu: da pindoba aos negócios da sociobiodiversidade
Na região do Médio Mearim, no Maranhão, quebrar coco babaçu é uma atividade protagonizada pelas mulheres, e que conecta famílias ao território. A castanha é vendida para fazer produtos como o óleo de babaçu (de uso doméstico e de uso industrial), mas também azeite, sabão e sabonete. Enquanto quebram o coco, as mulheres entoam canções que falam do cotidiano e de suas lutas, o que as fez ganhar a alcunha de encantadeiras. Mais que tradição, quebrar coco é também sobrevivência diante dos conflitos de terra, enfrentamento ao desmatamento e a forma como cada geração alimentou seus filhos.
“Tudo começou pela fome”, relembra Franciene Pereira Frazão, 50 anos, hoje gerente da Fábrica de Sabão e Sabonete da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e Lago dos Rodrigues (AMTR). “A gente quebrava o coco, trocava por um punhado de arroz que comia com uma cebolinha do canteiro. [Isso] quando tinha canteiro, porque o gado [dos fazendeiros] destruía tudo”. Da fome surgiu a mobilização das mulheres, que ainda enfrentavam resistência dentro de casa, com os maridos se recusando a ajudá-las. Depois de muita persistência, eles enfim se juntaram a elas.
Foi necessária a organização coletiva, que resultou em sindicatos, cooperativas e associações, como a AMTR, a Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco (COPPALJ) e a Associação em Áreas de Assentamento do Maranhão (ASSEMA). A região se destaca pela organização social e pela luta por terras na década de 1980, o que se reflete na forma como se estruturam.
A COPPALJ, criada no início dos anos 1990 por agricultores agroextrativistas, é focada na produção e comercialização do óleo orgânico bruto e refinado de babaçu. Já a ASSEMA, originada nos anos 1980, atua além do município de Lago do Junco. As quebradeiras de coco, aliás, não estão apenas ali no Maranhão, mas também são facilmente encontradas em regiões do Piauí, Tocantins e até no Pará – as palmeiras de babaçu são típicas da transição entre Cerrado, Caatinga e Amazônia. A atuação das organizações locais é bem sucedida por diversos motivos. Entre eles, por se tornar um atrativo para filhos e netos de quebradeiras.
Adeptos da pedagogia da alternância, na qual estudantes alternam teoria na sala de aula com as atividades feitas por seus familiares no campo, as gerações mais jovens têm a oportunidade de concluir o Ensino Superior fora do território e voltar para casa. Alguns já se especializaram em métodos agrícolas ou zootecnia no ensino formal, agora integrando as equipes da ASSEMA ou da COPPALJ. Com uma visão contemporânea do que é fazer agricultura, propõem caminhos que se somam aos conhecimentos tradicionais.
Ao lado de diversas outras organizações, as três entidades aprimoraram a produção dos artigos originados do coco, afinaram toda a cadeia, alcançaram mais mercados, nacionais e internacionais, e se viram prontas para mais amadurecimento. Dessa forma, surgiu o Consórcio Babaçu Livre.
Consórcio Babaçu Livre
“O Consórcio Babaçu Livre é a união em rede de diversas organizações que já trabalham com o babaçu, para apoio e aprendizado com as experiências coletivas a fim de alcançar mais mercados”, explica Ana Carolina Bauer, analista de conservação do WWF-Brasil. “Alcançar mercado é aumentar renda, e aumentar renda é fornecer uma alternativa para permanecer no território”. Dentro de uma estratégia de conservação do Cerrado do WWF-Brasil, a cadeia do babaçu é vista como uma das que mais geram impacto social e ambiental e que, portanto, precisa ser fortalecida.
O Consórcio é apoiado por organizações como a Central do Cerrado, cooperativa que agrega diversos grupos comunitários do bioma e da Caatinga, oferecendo apoio técnico, informativo, mas também como ponto de venda dos produtos feitos pelas parceiras. Segundo Mayk Arruda, que trabalha com o babaçu dentro da Central do Cerrado há duas décadas, a ideia é levar todo esse conhecimento adquirido em mais de 30 anos de luta e organização social da comunidade do Lago do Junco para outras entidades que trabalham o coco. O próprio nome da Consórcio é decorrente de uma vitória da classe: quando, a partir de 2008, as quebradeiras puderam acessar livremente os babaçuais, com o respaldo legal da Lei dos Babaçus Livres.
“A gente percebe, principalmente na cadeia do babaçu, que é possível construir relações comerciais que promovam a equidade de ganhos entre as partes, do começo ao fim da cadeia”, diz Mayk. “Além de gerar um produto de excelente qualidade, versátil e aplicável em muitos segmentos, há todo esse contexto de contribuição socioambiental, sociopolítica, voltado para construir relações mais justas de produção e comercialização, para um público cada vez mais exigente com a origem do que compra e consciente daquilo que coloca em seu corpo.”
Consumo aliado à conservação
Em toda a sua versatilidade, o óleo de coco babaçu é uma opção para óleos comumente associados à degradação ambiental.
“Babaçu não é monocultura,” Agenor Nepomuceno, técnico agrícola, esclarece. “É possível ter outros tipos de vida em consórcio com as palmeiras, como o plantio de outras espécies, pomar e até o gado”, ensina o filho de quebradeiras “com muito orgulho”, cria da pedagogia da alternância.
Ele lembra também que uma única palmeira de babaçu pode viver 80 anos. E que mesmo ela tendo seu auge dos 25 aos 45 anos, as árvores idosas são fundamentais para fazer a reserva de carbono – fora a sombra que geram. Já as jovens, as pindobas, só começam a produzir aos 15 anos. Por isso, diz Agenor, é preciso sempre equilibrar a existência das três fases em um mesmo território. E nunca, jamais, cortar as pindobas, que ainda nem começaram a produzir.
Cada vez que uma pessoa consome um produto que usa o óleo do coco quebrado pelas encantadeiras, ela incentiva a conservação da floresta e de modos de vida tradicionais, já que é quase impossível separar a palmeira do babaçu da quebradeira. Nas palavras de Silvianete Carvalho, Secretaria Executiva da ASSEMA: “A palmeira do babaçu é como a natureza feminina, resiliente, resistente, cuidadora, mãe de muitos. Resiste há anos de degradação, derrubadas, fogo, descaso. Exatamente como nós, mulheres, resistimos sempre.”
Fonte: WWF-Brasil