Texto adaptado do Professor Josemar Carvalho:
Os 356 anos de escravidão negra é uma marca profunda na sociedade brasileira. A cabeça do nosso país é escravocrata, as desigualdades sociais são reflexos disso. No Brasil, o racismo não é um preconceito pontual contra um grupo minoritário que visa se estabelecer como gueto. É contra a maioria da população. O capitalismo brasileiro se estruturou tendo como base exploração/opressão racial.
A discussão de classe se funde com questão racial. O racismo no Brasil é estrutural. Os trabalhadores no Brasil são na sua maioria são pessoas pretas. Recebendo os piores salários e tendo as menores oportunidades. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostram que as pessoas pretas recebem 40% a menos do que as não-pretas.
Neste texto temos o objetivo de dialogar brevemente sobre o papel da escravidão na constituição de nosso país, sobre ausência de políticas públicas para as pessoas pretas após a Lei Áurea e os pressupostos básicos para luta contra o racismo.
Este texto não tem a pretensão de encerrar o debate e fechar as portas para o diálogo. Aproveita a data para fazer trazer reflexões e apontar perspectivas necessárias sobre a luta contra o preconceito racial no Brasil.
A escravidão é um pilar histórico das relações de trabalho no Brasil
Desde o período colonial, a mão-de-obra negra foi a força de trabalho brasileira. As primeiras pessoas negras chegaram no Brasil entre 1532 e 1538, visando o cultivo dos produtos tropicais.
A opção pelo trabalho escravo preto estava diretamente ligada ao tráfico negreiro e necessidade da Corte europeia e do Clero. A intensificação dessa ação ocorreu no Século XVII. A existência majoritária de escravidão negra em nosso país não apaga o uso do trabalho dos índios em vários momentos da nossa história.
Como dizia Foulcalt: “onde há poder tem resistência”. A luta negra não é um fato a ser menosprezado. Apesar de muitas lacunas na historiografia, é possível observar várias lutas ao longo dos diversos séculos. Os quilombos brasileiros foram a maior exemplo desta auto-organização.
O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. O Império Brasileiro (1822-1888), marcado pelas pactuações entre os monarcas e elites escravocratas da época, “segurou” ao máximo o processo de libertação dos escravos. A unicidade do território, a preservação da monarquia e manutenção da escravidão, foi um tripé construído que forneceu bases para existência do Império Brasileiro.
A unicidade do território fez com que as terras do antigo império português se constituíssem num único país, diferente da América Espanhola, que se fracionou em vários países. A preservação da monarquia, garantiu de forma “sui generis” a linha de continuidade da linhagem portuguesa a frente do “novo Império” brasileiro. Contradições são visíveis, como que um monarca português deu grito do Ipiranga contra o seu próprio pai e na sequência foi substituí-lo. Uma das Contradições que a história tradicional não irá apontar.
A escravidão foi um pilar econômico das relações de poder da época. Isto explica o fato de que da abolição brasileira ser a última entre os países independentes da América. O seu atraso foi um produto de um conjunto de pactos entre as elites regionais da época, que ao longo dos anos foram negociando saídas transicionais diante pressão internacional inglesa e do “medo” de revolta negra como teve no Haiti.
A lei Áurea não apresentou políticas de integração da pessoa preta à sociedade
Em 13 de maio de 1888, através da Lei Imperial nº 3353, foi sancionada a Lei Áurea, que dava um “fim formal” à escravidão negra no Brasil. A escolha da data está relacionada ao aniversário em data comemorativa ao nascimento de seu bisavô, Dom João VI. O contexto de político de 129 anos atrás era marcado pela falta de representatividade política do Império e pela mudança gradual nas relações de trabalho servil no Brasil. Estudos apontam que menos de 10% da mão de obra do ano da abolição era escrava. Processos anteriores (Lei de Terras -1850; Lei do Ventre Livre-1871; Lei do Sexagenários – 1885, entre outras) já sinalizavam para o fim da escravidão. Saiba mais aqui.
Longe de representar a “democracia racial”, a Lei assinada pela Princesa Isabel, em data comemorativa ao nascimento de seu bisavô Dom João VI, não colocou a pessoa preta em situação de equidade social, política e econômica no país. A lei Áurea não veio combinada com nenhuma política efetiva de inserção das pessoas pretas na sociedade brasileira. Não teve reforma agrária, nem incentivo financeiro e muito menos reforma urbana. O humano preto foi posto à margem da sociedade e nela sobrevive.
Por um lado a elite branca escravocrata se transformou nos grandes proprietários de terras. A Lei de Terras de 1850 (colocou o valor de compra como fator determinante para propriedade) colaborou decisivamente para consolidação das grandes propriedades já existentes. Transformando-as nos latifúndios do nosso tempo.
Por outro lado, as pessoas pretas ao longo dos seus 100 primeiros anos de liberdade nunca tiveram uma política de afirmativa. Do ponto de vista geral, as cotas nas universidades são a primeira política afirmativa de grande porte para o povo preto. Muito tempo se passou e nada foi feito!
Algumas premissas iniciais para o trabalho da luta racial
Como vimos, o racismo é parte estruturante da sociedade capitalista brasileira. Entender este pressuposto é uma premissa fundamental para lutarmos por igualdade no nosso tempo. Não haverá uma verdadeira inserção do povo preto enquanto existir capitalismo e suas formas de exploração. As pessoas pretas ganham os menores salários. Quanto mais precarizada a classe trabalhadora, mais negra ela será.
A escola pública, os serviços de saúde e políticas de assistência social não atendem a maioria de nossos irmãos e irmãs pretos e pretas. A seletividade da justiça e violência policial tem alvos “claros”: nós, os pretos. O caso de Rafael Braga é mais um exemplo da seletividade racial do sistema judiciário brasileiro, que prende preto, pobre e favelado e manda soltar Eike Batista.
Um programa socialista para o Brasil deve incorporar as pautas e expressar a luta do povo preto em nosso país. Isto não quer dizer que não podemos lutar contra medidas transitórias e parciais como parte do fortalecimento da nossa luta.
Outro aspecto fundamental que devemos levar em consideração é que a população negra no Brasil é maioria. Dados do IBGE apontam que 51% da população do nosso país já se autodeclara negra, diferente dos anos anteriores onde a “ideologia do embranquecimento” mascarava os dados.
Compreender isto é fundamental para avançarmos na luta política. Não somos um gueto, somos a maioria. Queremos a nossa reparação histórica e social. Não queremos apenas nos inserir no mercado de trabalho. Queremos ser dirigentes. Queremos cursar faculdade. Ser médico. Ser professor. Ser advogado. Ser Juiz. Queremos ter a nossa oportunidade.
Uma reflexão também necessária, é de que diferente da construção histórica dos Estados Unidos e da África do Sul, onde os espaços foram abertamente segregados, no Brasil, a segregação racista se apresentou de maneira diferente. Como o processo não foi “institucionalizado”, a segregação espacial existente ficou “velada”. Os muros sociais e raciais são invisíveis aos olhos do senso comum.
A compreensão deste pressuposto nos coloca numa luta aberta contra a concepção liberal de meritocracia. Combater a meritocracia é combater a exclusão. Discursos meritocráticos não levam em consideração as condições sociais dos indivíduos em questão. Como comparar um jovem preto que mora no Morro do Feijão no bairro do Paraíso em São Gonçalo, que estuda numa escola pública altamente sucateada, que trabalha oito horas por dia, com outro filho de um empresário rico da Zona Sul do Rio. O discurso meritocrático não leva em consideração tais diferenças. Igualam coisas diferentes para manter a ordem social no mesmo lugar.
Quem quer revolução deve observar para além da aparência, deve ir na essência dos fenômenos e nas raiz dos problemas. Para isso, é fundamental compreender que a luta pela libertação do povo preto inclui a luta política por direitos sociais e contra o sistema capitalista.
*Este texto foi escrito em 2017 pelo professor Josemar Carvalho e adaptado pela Nossa Causa. Acesse o texto original clicando aqui.