“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Esse ditado iorubá nos faz refletir sobre o tempo das coisas e sobre os caminhos que a vida toma, além de ser um bom ponto de partida para compreender Lélia Gonzalez e a atualidade do seu pensamento.
Lélia foi uma mulher à frente de seu tempo. Sua produção acadêmica e suas entrevistas comprovam tal vanguarda. Na virada dos anos 1970 para os anos 1980, a mineira, aquariana e filha de Oxum trouxe para debate questões sobre psicanálise, marxismo, juventude negra, cultura negra e, principalmente, feminismo negro, transando ideias que hoje não saem dos livros e, até mesmo, das redes sociais.
Recentemente, Angela Davis, importante ativista e intelectual negra estadunidense, declarou: “Eu sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. Mas por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Acho que aprendi mais com Lélia Gonzalez do que vocês aprenderão comigo¹”. Ou seja: leiam Lélia.
Dentre os vários textos emblemáticos, é urgente citar “Racismo e sexismo na cultura brasileira²” (1984), que nos faz pensar na insistente estratégia em colocar nós, mulheres negras, apenas como mulatas, domésticas e mães pretas na sociedade brasileira. O feminismo negro que Lélia tanto falou e escreveu foi para colocar o dedo na ferida, evidenciando falácias como a democracia racial e mostrando que nunca mais iríamos voltar para a “lata de lixo”.
Outro texto que impressiona pela contemporaneidade é “O terror nosso de cada dia³”. Escrito em 1987, ele descreve uma realidade que permanece ano após ano: o genocídio da população negra – cuja principal frente é o extermínio da juventude negra. Atenta às violências e às resistências, Lélia descreveu a partida precoce e violenta de Jorge, morto à queima roupa por agentes do estado, cujo “erro” foi nascer preto e pobre no Brasil, e a coragem de Tininha, mãe do jovem, que, apesar de toda dor, “insiste e não desiste”.
Há um itan* que explica uma das conexões de Exu com Oxum. Resumidamente, ele narra o episódio em que Oxum conseguiu “driblar” Exu e com toda astúcia obteve os segredos do jogo de búzios (importante oráculo no Candomblé e na Umbanda). Dali em diante, Oxum passou a ser capaz de ver o futuro.
Honrando sua ancestralidade, que é um ciclo de passado-presente-futuro, Lélia deixou reflexões sobre raça, gênero e classe, entre outros diversos temas de maneira perspicaz e em bom pretuguês. Ela falou de um presente que só foi verdadeiramente compreendido muitos anos depois, comprovando a potência e a atualidade de sua obra.
Texto de Maíra de Deus Brito.
1 – Universa – UOL – Angela Davis recomendou: quem é Lélia Gonzalez, ícone do feminismo no país
2 – Racismo e sexismo na cultura brasileira – Lélia Gonzalez
3 – GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (org.). Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 263-264.
* – Narrativa Iorubá.
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