Era julho de 2014 e na porta do Museu Nacional, no coração de Brasília, eu ouvia com atenção uma conversa informal de uma ex-integrante do Movimento Negro Unificado (MNU) sobre Angela Davis, que tinha acabado de fazer uma palestra para um auditório lotado. “Angela é muito importante, mas antes dela, veio Lélia Gonzalez, de quem falamos muito pouco ou quase nada”.
Aquele momento foi uma virada de chave. Eu precisava descobrir mais sobre Lélia, figura essencial para as ciências sociais do Brasil e do mundo, mas que raramente figura nas ementas das disciplinas universidades afora.
Lélia falou e escreveu muito sobre as mulheres negras. Desde a década de 1970, temos reflexões importantes como nós, mulheres negras, somos atravessadas por uma tripla opressão (gênero, raça e classe) e como esse cenário nos coloca em maior vulnerabilidade. A desigualdade histórica persiste: de acordo com estudo recente do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (MADE), em todos os cenários analisados na pesquisa, o grupo de mulheres negras é o que apresenta as maiores taxas de pobreza e extrema pobreza.
Igualdade nas diferenças
Com a aproximação do 18 de junho, data de criação do MNU, é essencial lembrar que foi a partir das reuniões do movimento negro que o feminismo negro – que Lélia tanto nos ensina – ganhou força.
No emblemático “Lugar de negro” (1982), escrito em parceria com o sociólogo Carlos Hasenbalg, Lélia descreve o cotidiano do movimento negro e como ele não estava livre do machismo. Foi por causa dele que as mulheres negras passaram a se reunir separadamente e a debater alguns problemas em comum. Na sequência, as questões eram levadas para o restante do movimento.
Lélia conta:
[…] O atraso de alguns manifestou-se num tipo de moralismo calvinista e machista, que caracterizava o quanto se sentiam ameaçados pela capacidade e sensibilidade das companheiras mais brilhantes; em seus comentários, falavam de mal-amadas e coisas que tais (baixaria mesmo). (GONZALEZ, 1982, p. 35)
Apesar das faíscas, foi amplo o entendimento sobre o que estava sendo posto e, desde então, Lélia seguiu estudando e praticando o feminismo negro.
Agora, engana-se quem pensa que o referido quiproquó enfraqueceu ou enfraquece o movimento negro. Todo movimento social é formado por tensões e aqui não seria diferente. Contudo, é essencial entender as diferenças e respeitar as variadas demandas. Ou como explicou Lélia: “falar do Movimento Negro implica no tratamento de um tema cuja complexidade, dada a multiplicidade de suas variantes, não permite uma visão unitária. Afinal, nós negros, não constituímos um bloco monolítico, de características rígidas e imutáveis”.
Por fim, reafirmo a indissociabilidade de Lélia Gonzalez e o feminismo negro lembrando a criação do Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras (1983), que teve Lélia como primeira coordenadora.
Segundo Alex Ratts e Flavia Rios no livro “Lélia Gonzalez”, o coletivo surgiu da “necessidade de construir um grupo que fosse autônomo, fora das dependências do movimento negro”. Assim nasceu Nzinga, coletivo-jornal que homenageou uma importante rainha angolana homônima e cujo símbolo era um pássaro (remetendo à ancestralidade feminina de tradição nagô). O logotipo também chamava atenção pelo significado: tinha o amarelo de Oxum e o roxo do movimento internacional de mulheres.
Texto de Maíra de Deus Brito
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Referências
GONÇALVES, Viviane. Nzinga Informativo: a imprensa feminista feita por negras e para negras. Disponível em: <https://medium.com/@demode/nzinga-informativo-a-imprensa-feminista-feita-por-negras-e-para-negras-87eeabed6271>.
GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar do Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.
NASSIF-PIRES, Luiza; CARDOSO, Luísa; OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de. Gênero e raça em evidência durante a pandemia no Brasil: o impacto do Auxílio Emergencial na pobreza e extrema pobreza. Disponível em: <https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/genero-e-raca-em-evidencia-durante-a-pandemia-no-brasil-o-impacto-do-auxilio-emergencial-na-pobreza-e-extrema-pobreza/>.
PROJETO MEMÓRIA. Lélia Gonzalez – o feminismo negro no palco da história. Disponível em: <http://www.projetomemoria.art.br/leliaGonzalez/obras-em-pretugues/livros-publicados.jsp>.
RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010.