Esse texto não se trata de cabelos. Ou melhor, ele também trata de cabelos, mas é um pouco mais profundo. Se trata das raízes. É sobre o passeio por todas as curvas internas e externas dos seus cachos até chegar ao destino final, que podem ser as curvas dos seus pensamentos ou do seu corpo. Por que não?
Aos 17 anos, recém-mudada para a capital paranaense, Curitiba, fascinada com todas as possibilidades que a faculdade, os novos amigos e a cidade grande apresentavam, logo recebi o apelido de Globeleza. Foi na primeira semana de aula e em meio à agitação dos trotes.
Naquele momento foi uma honra. Tinha acabado de ser rainha de bateria em uma escola de samba na minha cidade, corpinho em dia, bunda durinha e peitinhos redondinhos, dançava feliz da vida ao som das músicas da bateria.
Sem contar todas as incontáveis vezes em que chegavam colocando a mão no meu cabelo e perguntando: “é difícil de cuidar?” ou “dizem que cabelo crespo dá muito trabalho, né… é verdade?”, mas em nenhum momento se preocupavam em perguntar se eu me importava com esse toque ou se eu permitia que encostassem em meu cabelo.
Hoje, alguns anos depois, vejo como isso era invasivo e quando escolho sair de casa “sem usar cabelo” – traduzindo, usando turbante ou lenços enfeitando meu cabelo, também é para me proteger. Mesmo que eu não saiba do quê, mesmo que não saiba direito o significado ou qual, de fato, é a razão por trás dessa prática, no fundo é para prevenir esses toques indesejados. Eu apenas uso. E sinto.
Tem vezes que percebo olhares de reprovação, sinto receio. Respiro fundo, reúno todas as forças para fazer cara de poucos amigos ao mesmo tempo que me pergunto baixinho: “será que tão pensando que eu sou macumbeira?”. Sem contar a existência do assédio apenas por estar vivendo/andando nas ruas, que se agrava quando estou de turbante e aí dá margem para questionamentos como “será que hoje vão mexer comigo porque estou de saia ou porque estou usando turbante?”.
Dói pensar que assim que você coloca o pé na calçada, nem você mal atravessou a porta da sua casa, que alguém vai buzinar, vai gritar ou vai fazer alguma piadinha, seja pelo seu vestido fresquinho num dia de verão ou pelo volume do seu cabelo num dia NORMAL. Sem vitimização. Devia ter gravado. Esses dias saí de casa de saia e sobretudo, às 8 horas da manhã de um dia frio, até chegar ao terminal, que fica a uma quadra de casa, 2 pessoas mexeram comigo. Penso que viver isso praticamente todos os dias da sua vida desde que o mundo começa a te ver como uma mulherzinha é complicado. E nesse momento várias pessoas devem estar pensando: Puts, que f***.
É, em nenhum momento disse que era um mar de rosas. Mas nem tudo é tão ruim que não possa piorar! Por isso, depois que você percebe todas as agressões sutis do cotidiano, sinto lhe informar que piora, porque se o rolê da vida é infinito, a problematização é maior ainda.
Por outro lado, existem dois pontos pelos quais vale a pena continuar lutando e enfrentando todo o tipo de racismo e preconceito. O primeiro é perceber como colocar essas questões na mesa contribuem para a desconstrução de pessoas (em sua maioria branca e amigxs externxs ao movimento negro) que demonstram uma empatia sincera e repensam/as vezes reconhecem seus privilégios perante a sociedade.
E o segundo é o fortalecimento da sororidade entre as minas pretas. Que é lindo!!!! Quando você realmente cresce e vê que é aquela MULHER NEGRA de que tanto falaram ou esperaram certas atitudes (como uma sambadinha), aquela que não tem voz (voz que muitas de nós nem sabem que tem dentro de si porque estão sendo silenciadas a todo momento em casa, no trabalho e nas salas de aula), aquelas que sofrem abusos constantes por causa do exibicionismo quase circense do nosso corpo (da sexualidade também), e que é forte por conta de todas essas coisas e mais um montão que ninguém comenta.
E já que estamos falando do âmbito privado da vida, a solidão da mulher negra – tema bastante comentado em nossas rodas, mas pouco presente no cotidiano de outros grupos – precisa ser repensada justamente por aqueles que gostamos e que provocam essa situação. A “mulata tipo exportação” contribui com a objetificação desse corpo porque continua dizendo que a negra é “boa de comer” e a branca é “para casar”. Repense e veja até quando você vai ficar com uma negra na calada da noite e vai sair de mãos dadas com outra em plena luz do dia. Como dizia a poeta, “transar com uma negra não te faz menos racista” .
Tô cansada de presenciar e ser protagonistas de histórias como essa, de me pedirem pra sambar, de tocarem em minha cabeça sem permissão e até de debater sobre o assunto.
O mais bonito é saber que podemos contar com as outras irmãs pretas quando surgem as controvérsias e dúvidas, quando o desespero e o choro escorregam por nós.
Falando em nós, amarrar o texto não é tarefa fácil para aquarianas dispersas como eu, mas zelar para que os elos estejam sempre conectados, assim como todas as pontas da Rede de Mulheres Negras (um Salve pra marcha que aconteceu em Brasília!!!) e que se o Estado não é por nós, sejamos cada dia mais umas pelas outras.
Por fim, agradeço o espaço para fazer essa pequena fala sobre meus devaneios e experiências. Sempre que lia esses textos em blogs militantes, por vezes criticava como exagerados.
Mas durante a escrita (que demorou alguns dias torrando a cabeça debaixo dos lenços…) para concluir, entendi o sentido de tudo isso.
Quero, como feminista negra (e essa é a 1 vez que me intitulo dessa forma publicamente, apesar de todas as manifestações), abraçar mais e mais meninas mulheres da pele preta que assim como eu, estão em [des]construção constante para que juntas tenhamos mais coragem para enfrentar e agir em prol da mudança.