O mundo, e alguns de nós, está cada vez mais etiquetado. Andamos por aí cada vez mais pelo avesso e cheios de etiquetas com regras para uso. Há adesivo para tudo: para o trabalho, para ser o que se acha que é, para o amor, para beber, namorar, rir, respirar, inspirar.
Etiquetas com aquele adesivo grude que, quando sai, deixa marcas, nem adianta lavar, utilizar produto algum. Dão trabalho na hora de retirar. Etiquetas com visões de mundo para tudo no mundo e, irresolutos, andamos por aí cheios de protocolos apenas para nos tornar sados de nosso próprio sofrimento.
Interessante perceber que muitos seres-etiquetados vivem um mal-estar-etiquetado em permanente estado de etiquetação-inquietação. Seres zanzando com o andar etiquetado-inquietado para tudo que é canto com sua lista de exigências à mão, céleres a exigir regulações às demais pessoas para, nos espaços por onde circulam, poderem se manifestar.
O curioso é que nas trocas em qualquer tipo de inter-relação essas pessoas já chegam com esse cartão de apresentação: sou assim, assado, este é o anúncio do meu eu já determinado, sou esta marca de mim mesmo, convêm me aceitar exatamente do jeito que sou talvez determinado por experiências várias, algumas interessantes, outras vividas em torno de eventos nada agradáveis.
Então, à medida que se relacionam com o outro em qualquer campo, etiquetam-se ainda mais para garantir o sucesso daquela relação seja em virtude de sua necessidade de agradar a si ou a este outro. Por razões várias, se esta relação não garantir trocas, essas pessoas voltam, então, a andar etiquetadas para, em um momento sutil de lucidez, retirá-las. E aí tornam a colar etiquetas quando houver oportunidade. Etiqueta por etiqueta e o olho ficará cego se olhar apenas para dentro de si.
Dessa forma, este homem-anúncio, esta mulher-anúncio, andam asfixiados por essas etiquetas que não deixam espaço para o renascimento de identidade com jeitos mais saudáveis e saborosos de viver. Há em todo esse processo uma anulação preciosa de qualquer tipo de renovação dos pontos de vista e um permanente cultivo funerário dos velhos eus.
Etiquetados, por fim, com os logotipos do que um dia já fomos, deixamos escapar o presente, a possibilidade de re-criar, co-criar, trans-criar e de co-operar a si mesmos, o que significaria renunciar a todas essas listas emocionalmente exaustivas de expectativas várias que cultivamos ao longo dos anos. Vamos, silenciosamente, nos tornando cativos de nossas próprias expectativas e rótulos.
O mestre zen-budista Thich Nhat Han conta que ser fiel a uma verdade sobre o mundo pode empobrecer nosso caminho espiritual. Para ele, ver, ouvir ou sentir alguma coisa e considerar que é a única coisa que pode trazer conforto e vantagem a nós, ficamos sempre inclinados a ficar presos nisso e considerar tudo o mais inferior.
Cada um de nós pode ainda ser aprisionado pela visão que temos a respeito de nossa felicidade. Acreditamos que só podemos ser felizes sob certas condições. Portanto, de acordo com este ensinamento, ajuda muito dar um passo atrás e olhar para nossa visão a cerca de nossa felicidade.
O mestre budista Lama Padma Santem [1], diz que o grande obstáculo para o avanço do nosso conhecimento não é tanto o que se desconhece, mas o que já se sabe.
Porque aquilo que nós já sabemos nos impede de ir adiante, nos amortece, aparece sempre novamente diante dos nossos olhos como se fosse a verdade e obstaculiza o nosso andar.
O atual Dalai Lama observa, no livro “A arte da felicidade”, que a capacidade de encarar os acontecimentos a partir de pontos de vistas diferentes pode ser muito útil. Com essa prática, podemos usar certas experiências, certas tragédias, para desenvolver uma tranquilidade na mente.
Em geral, uma vez que já nos encontremos numa situação difícil, não é possível mudar nossa atitude com a mera adoção de um pensamento específico uma vez ou duas. Trata-se, sim, de um processo de aprendizado de novos pontos de vista, de treinamento e familiarização com eles, que nos permite lidar com a dificuldade.
O passado não deve cercear o cômodo do inédito. Esquecer é palavra trissílaba, não dói nada a língua para pronunciar. Mastigue sua vaia interior. Triture toda e qualquer expectativa imediatista. Pirateie as pequenas frustrações que sabotam a paciência no presente. Suborne as expectativas futuras com a promessa de estar sempre focado no tempo presente.
Para estar sempre aberto a novos pontos de vista sobre si e sobre o mundo é importante desalojar arquiteturas passadas. Fazer a coleta seletiva da memória. Reciclar o vidro das esperanças. Separar o sentimento que se tornou orgânico. Amadurecer significa estar pronto para a colheita e abandonar qualquer etiqueta e andar nu de expectativa.
Renunciar a todas as nossas etiquetas acumuladas gratuitamente ou não, e parar agora mesmo de divulgar a marca daquilo que pensamos ser enquanto projeto acabado e definitivo de identidade é um estilo mais saudável e uma forma de estar mais aberto ou aberta às paisagens bonitas do presente que há dentro das outras pessoas e dentro de nós mesmos e de nós mesmas.
[1] Líder do Budismo Tibetano no Brasil e ativista pela paz. Fundou o Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB).