
No dia 26 de abril, em um trecho esquecido entre o asfalto e o silêncio da mata atlântica, entre a cidade de Bertioga e São Sebastião, numa área de 85 km² de mata preservada no litoral de São Paulo, foi inaugurada a primeira clínica odontológica permanente do mundo dentro de uma aldeia indígena. O nome é simbólico: Tekoá Sorridente — “aldeia sorridente”, em guarani. Mas a entrega da clínica vai muito além de um sorriso; é sinônimo de cuidado, autonomia, respeito ao território e à cultura.
A clínica tem capacidade para atender cerca de 1.000 pessoas, incluindo os 550 indígenas e 150 famílias presentes na aldeia guarani do Ribeirão Silveira e dos povoados vizinhos, com 40 consultas semanais gratuitas, feitas duas vezes por semana, em especialidades que vão da odontologia preventiva às cirurgias complexas. Com estrutura digital e tecnologia de ponta, pela primeira vez, tratamentos de canal, cirurgias, próteses e reabilitações completas com escaneamento digital intraoral estão disponíveis dentro da aldeia.
O projeto é fruto da parceria entre a ONG Doutores da Amazônia e a iniciativa privada, permeada pela empresa Dentsply Sirona, que doou equipamentos, com apoio da comunidade local e da Prefeitura de Bertioga, que doou tendas e cestas básicas.
Márcio Alvim do Nascimento, responsável técnico da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), relembra que iniciativas como essa restauram a autoestima e a dignidade da população indígena. “A aldeia guarani de Ribeirão Silveira é importante para o equilíbrio ecológico da região. É preciso cuidar dessa população como um todo, oferecendo saúde, condições melhores, igualdade e autoestima para que a tradição continue”, ressalta.
Tori Porã: um sorriso bom, em guarani – A inauguração da clínica foi precedida por um ritual de proteção e purificação, conduzidos pelos indígenas, que incluiu também os voluntários, profissionais de odontologia e jornalistas ao som de cantos típicos da aldeia, cantados para respeitar o início dos trabalhos.
Natália, a primeira moradora da aldeia a receber atendimento, entrou antes de todo mundo. Tremia de medo das luzes, dos barulhos dos aparelhos, do desconhecido, levando seu bebê recém-nascido a tiracolo. Mas saiu dali dizendo que não sentiu dor. “Foi tranquilo e me ajudou muito”, ressaltou, depois de um tratamento de canal com fluxo digital. “Tori porã”, ela disse. Um sorriso bom, em guarani.
Mais do que isso: um símbolo. Um jeito de dizer que agora, os indígenas da aldeia e dos arredores não precisam mais atravessar horas de estrada ou esperar muito tempo para receber tratamentos odontológicos mais complexos.
Paciente Wera Mirim fez um tratamento de canal | Foto: Divulgação Dentsply
Viviane Aramiri, de 19 anos, outra moradora da aldeia, fala da expectativa coletiva: “Tem criança aqui que nem sabe escovar os dentes. Agora tem quem ensine. Estou na fila, esperando minha vez!”, comemora. Também estão programadas sessões periódicas de manutenção e orientação sobre saúde bucal para os indígenas.
A estrutura da Tekoá Sorridente – Tudo foi feito com o cuidado de quem sabe que está entrando em outro território. A estrutura física foi cedida pelo cacique Adolfo Wera Mirim. A instalação elétrica foi feita em colaboração com técnicos, garantindo que a modernização respeitasse a lógica da comunidade. Os equipamentos seguem padrão de tecnologia verde — tudo digital, e pensado para minimizar impacto ambiental.
Os tratamentos odontológicos serão feitos por meio de scanner digital e tecnologia 3D. Ou seja, procedimentos que demorariam meses por falta de insumos podem ser realizados em 15 minutos.
O consultório ocupa apenas 70 metros quadrados, mas já carrega um peso histórico imenso. “Isso aqui é uma conquista da confiança”, explica Caio Eduardo Machado, dentista e fundador da Doutores da Amazônia. “Entrar em uma aldeia não é só montar uma estrutura. É escutar. É entender o tempo deles, a história, o medo dos equipamentos. A gente não pode entrar aqui só com jaleco e lupa”.
Caio que, inclusive, vem de uma família de dentistas – todos envolvidos em projetos sociais. “Sou de São Paulo, mas conheci um projeto social em Rondônia na época da faculdade, e me veio o despertar”, relata. Desde então, foram mais de 100.000 atendimentos em 52 comunidades indígenas pelo país com a Doutores da Amazônia.
Como funcionam os atendimentos odontológicos para indígenas
Ainda de acordo com Caio Machado, a SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) oferece serviços de atenção básica em odontologia dentro das aldeias. No entanto, quando há necessidade de intervenções mais complexas — como próteses ou cirurgias — os pacientes precisam ser encaminhados a centros urbanos distantes. Essa dinâmica compromete a continuidade dos cuidados e, frequentemente, leva à piora das condições bucais.
“O que estamos fazendo aqui pode e deve inspirar o SUS, a SESAI, as prefeituras. Esse modelo pode ser escalado e atender muito mais gente”, afirma Caio.
Na Terra Indígena Guarani do Ribeirão Silveira, a parceria tem duração inicial de dois anos e a expectativa é de que sejam realizados cerca de 4.000 atendimentos odontológicos às comunidades indígenas durante esse período.
“Essa terra é nossa. E agora tem saúde aqui também”, diz o cacique Adolfo, enquanto observa as crianças brincando ao redor da clínica.
Num país onde a população indígena é frequentemente lembrada só em datas simbólicas, a Tekoá Sorridente faz exatamente o oposto: oferece cuidado no cotidiano.
A clínica não resolve todos os gargalos da saúde indígena no Brasil, mas inaugura um novo caminho — mais direto, eficiente e, principalmente, respeitoso com a cultura e o território dos povos originários.
(Fernanda Lagoeiro para a ONG NEWS)
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