Milhares de pessoas nas ruas unidas pelo mesmo objetivo. Elas ecoam juntas músicas e gritos de guerra, marchando para uma mesma direção. O sentimento que contagia o grupo fica explícito em seus rostos pintados. Eu poderia estar falando sim do carnaval, mas neste primeiro momento, gostaria de resgatar a lembrança ao movimento dos Caras Pintadas: articulação política que ocupou as ruas do Brasil para exigir o direito ao voto direto. E a relação entre o movimento da década de 1980 com as festividades carnavalescas de hoje em dia é simples: carnaval é revolução, é povo na rua, é espaço público sendo palco do público.
É claro que atualmente o verde e amarelo da bandeira do Brasil que marcaram os Caras Pintadas foram substituídas por muito glitter e cores. Mas a essência continua política, como em situações de protestos, e por mais que o sentimento de indignação da época tenha dado mais espaço para a alegria e festividade, o carnaval – em suas manifestações – permanece dando voz às causas e pautando a agenda pública e política.
O carnaval é um momento em que o povo fala com o povo e se reconecta com suas origens, a partir da maior festa popular da cultura brasileira. E seria incrível que pudéssemos celebrar os dias deste feriado considerando óbvio que pessoa preta não é fantasia, mulher não é objeto e travesti não é motivo para piadas, que fosse claro a todas e todos que o batuque da macumba é crença, que ser LGBTQI+ é identidade e os corpos são livres (para quem os têm e não quem os quer)…
Mas enquanto estas questões não estiverem culturalmente ligadas à formação de cada pessoa, o carnaval continuará sendo um espaço para trazermos estas pautas à tona.
O carnaval que conhecemos tem histórico de resistência
O carnaval no Brasil surgiu como uma celebração nas ruas que tem sua origem no Entrudo – uma festa popular portuguesa que veio às terras tupiniquins no século XVI. Nela os jovens brancos portugueses jogavam água perfumada e pós coloridos uns nos outros, enquanto que as pessoas pretas – ainda reféns do triste regime escravocrata – permaneciam apenas auxiliando seus “senhores” nas batalhas. Apenas no fim do século XIX, com a influência dos carnavais italiano e francês, é que a folia ganha status de beleza e sofisticação – começava ali a separação entre o carnaval de elite, com desfiles no centro das cidades, e o carnaval popular em bairros menores.
Esse histórico apenas reforça a presença do carnaval em nossa cultura como um movimento de resistência. Principalmente quando consideramos que o principal ritmo de músicas que faz parte das festividades é o samba – conheça mais sobre a origem preta do samba aqui – e que ele só se tornou a manifestação cultural que conhecemos hoje, a partir do momento em que incorporou traços da cultura preta.
A força do carnaval preto ficou gravada com mais força em nosso imaginário e cultura popular. Aqui no Brasil, como em Cuba, no Haiti e alguns países da América Central, essa expressão do carnaval também ganha uma importância muito grande a partir da presença de tradições e manifestações culturais das pessoas pretas, que por muitos anos foram reprimidas pelo período escravocrata. Além da riqueza das cores, histórias e crenças que passaram a serem representadas no carnaval repensado pelas pessoas pretas, a musicalidade, danças e ritmo do carnaval que conhecemos também chegou com elas.
E o Brasil abraçou tão fortemente toda essa bagagem cultural, que não à toa hoje em dia somos conhecidos como país do carnaval.
Os blocos são o povo
O carnaval de rua sempre foi muito forte em cidades como Olinda e Recife, em Pernambuco, e em Salvador, na Bahia, e nos últimos anos suas manifestações se fortaleceram bastante, também, em todas as regiões do Brasil. Isto acontece a partir do fortalecimento dos blocos populares, que descentralizam as festas de carnaval e configuram-se como espaços mais inclusivos para toda a população, desde as periferias até as grandes avenidas.
Hoje em dia, os blocos já são vistos como peças fundamentais de um movimento de ocupação dos espaços públicos, principalmente os de acesso diário às classes médias e médias baixas.
O crescimento dos blocos de rua no carnaval é uma demonstração da força que as pautas políticas estão ganhando a partir deste movimento. Faz parte de uma mudança na forma como populações urbanas se relacionam com os espaços e temas públicos e com os movimentos políticos. Em meio à crise política e ao desânimo que o país vive nos últimos anos, assistir a vitalidade da sociedade civil brasileira é um sinal positivo e encorajador para todas as pessoas.
Por meio dos bloquinhos, ninguém mais precisa olhar para alguém na rua e pedir “ei, você aí, me dá um dinheiro aí”, atravessar o deserto do Saara, ou mesmo perguntar à jardineira o porquê dela estar tão triste.
Afinal, o carnaval que vivenciamos é uma festa engajada que satiriza o cotidiano, a política e os costumes do atual momento. Os sambas e as marchinhas são muito adequados à caricatura: eles cumprem um papel que podemos caracterizar com a clássica expressão popular “cutucar a onça com vara curta”.
Neste carnaval, qual é o seu bloco?
Qual causa você vai levar para a rua ao pular carnaval? Por quais dores você estará falando? Como a sua fantasia e bandeiras irão empoderar a sua voz para gritar ao mundo a importância do respeito e de dar ao povo o que é do povo?
Desejamos para você um feliz carnaval, mas – sobretudo – que no calor dos momentos e na hora da diversão, você lembre-se que mesmo (e, talvez, principalmente) no carnaval é momento de agir politicamente por uma realidade melhor e mais inclusiva para todas as formas de vida.
Carnaval é revolução e você faz parte dela!