Era só mais um dia daqueles…
Como todos os outros dias da semana em que Ivana saia apressada de sua casa, se equilibrando em seus saltos altos, carregando em um braço sua bolsa e do outro a mochila de seu filho menor, o Gustavo de 4 anos, o João de 6 já conseguia levar a própria mochila e andar na pressa que a mãe exigia.
Eles não estavam atrasados, mas Ivana era do tipo que fazia tudo às pressas, caso contrário não conseguiria dar conta dos seus afazeres domésticos, cuidado e educação das crianças e sua profissão de cabelereira.
Aliás esse dia ela estava com a agenda cheia, era boa no que fazia, empreendia amor a cada escovada de cabelos, independente de quem fosse a cliente, por isso era requisitada no salão onde trabalhava, no centro de São Paulo.
Porém antes de ir para o trabalho ela tinha que deixar as crianças na escola. Eles estudavam na parte da manhã e à tarde ficavam com uma cuidadora contratada para olhá-los até que ela voltasse do trabalho.
Como a vida financeira andava apertada, Ivana conseguia pagar apenas o transporte escolar de retorno dos meninos para casa e a outra parte dispunha para pagar a cuidadora.
Além é claro, o financiamento da casa, o supermercado, as contas de luz, agua, telefone, etc, e as necessidades das crianças…as necessidades dela era atendida quando podia, isso bem de vez enquanto.
Voltando a esse dia especifico, além do peso da bolsa e mochila, Ivana carregava outro peso, mas esse em seu coração.
Seu companheiro, pai dos seus filhos, mais uma vez, passava dias sem aparecer em casa, ela sabia o motivo, mas se negava a acreditar na própria intuição. Afinal, dizer a si mesma que estava sendo traída pediria uma ação definitiva, além de acabar com sua autoestima, que já estava em frangalhos.
— Daqui a pouco ele volta… — ela repetia mentalmente.
E de fato voltava. Quando seus recursos terminavam e ele precisava de um porto para se recarregar. Quando isso ocorria, era a ela que ele procurava. Ele precisava dela, e ela acreditava que precisava dele.
Ele voltava, eles brigavam e por um curto espaço de tempo ficavam bem. O que ocorria é que seu companheiro tinha uma vida social ativa, era futebol, churrasco, saídas, noitadas e uma extensa lista de desculpas para não ficar com a família ou leva-los as festividades. O principal argumento era: “Só vai ter homem.”.
Entretanto nesse dia, ela sentia que algo iria ocorrer, não fazia ideia do que poderia ser, pressentia e estava amargurada.
Suas vizinhas sempre acompanhavam aquela cena, sabiam do sofrimento dela, mas não intrometiam. Ivana não era do tipo de sentar e abrir sobre a própria vida aos outros, guardava tudo dentro de si. Nem seus filhos sentiam o que ocorria dentro de casa e dentro do seu coração.
Mas esse dia…
Depois de toda rotina no salão, talvez pelo fato de ter se doado tanto as suas clientes, ela estava sem forças. Queria desistir. Chutar o balde!
Ao chegar no portão de casa e saber que teria que encarar toda rotina doméstica, lição de casa, e aguentar as desculpas esfarrapadas do companheiro, toda essa perspectiva a fez parar.
Logo ela que não perdia tempo, parou, e olhou para sua casa e disse:
— Que vida é essa? — ela mal se deu conta que a pergunta saiu em voz alta, bem na hora que sua vizinha Maria, uma senhora que devia ter uns 60 anos passava.
— Oi? Está tudo bem? — perguntou a vizinha e apesar de morarem lado a lado, Ivana nunca havia conversado com a mesma.
— Não, está tudo péssimo! — sua capacidade de controle já estava no zero e ela pós pra fora. — Eu sou uma boa pessoa, eu amo meus filhos, eu amo meu companheiro, e tudo, absolutamente tudo o que faço eu ponho amor. Eu trabalho, cuido da casa, cuido dos meninos, os educo da melhor forma que consigo, eu pago minhas contas em dia, reformei essa casa com o meu trabalho, comprei os melhores móveis, os mais bonitos para ter um lar aconchegante, eu mal olho para mim, tudo é para eles! — lágrimas já corriam pelo seu rosto, naquele momento ela não se importava, queria se esvaziar de tanta dor e despejou todo sofrimento em uma única frase.
— Continue… — pediu Maria, em compaixão com a mulher à sua frente.
— Eu faço tudo, tudo sozinha, e ele ainda me trai? Como ele pode fazer isso? Que tipo de amor é esse? Será que ele não percebe que me machuca? Será que não se importa? Eu estou cansada, exausta dessa vida. E ainda preciso fazer as lições de casa com os meninos, mesmo estando destruída por dentro. Por que é tão injusto? Por que nós sempre ficamos com a parte mais complicada? Eu aposto para você que vou entrar nessa casa, nós vamos brigar…e sabe o que acontece depois?
— Não. — Maria intuía, mas sabia que era importante Ivana desabafar.
— Ele provavelmente já encheu a barriga com as coisas que eu comprei ontem, vai me dizer que eu estou louca, que não está me traindo, que é coisa da minha cabeça, depois de acabar comigo ele vai sair e se divertir.
— Se acalme Ivana! — tentou Maria.
— Me acalmar? Eu me acalmo todos os dias, só que não quero mais ficar calma! Porque sou eu que vou ter que ficar em casa com meu emocional abalado e ter que fingir que está tudo bem para não afetar os meninos, e eu não quero mais isso! — após conseguir falar parte do que ia ao coração, a respiração de Ivana que estava tensa e rápida, foi se acalmando e ela se deu conta do que havia feito.
— Me desculpe, eu não tinha o direito de desabafar com você dessa forma. — estava envergonhada.
— Me permite dizer uma coisa?
— Claro — era o mínimo que podia dizer após o desabafo.
— Feche os seus olhos — pediu e Ivana atendeu. — Agora pense, de tudo o que me contou, sobre tudo o que você faz e você faz muito, peço que tire toda sua raiva do seu companheiro, tire ele dos acontecimentos da sua vida.
— Tirei.
— O que sobrou? O que mudou?
— Nada, eu continuei minha vida da mesma forma, mas sem a chateação.
— Percebe a mulher que você é Ivana! Você queria um lar aconchegante e o tem porque você o conseguiu! Além de tudo o mais que me contou. Te pergunto: onde seu parceiro estava nessas conquistas? Qual é a parte dele nessas conquistas? — Maria sabia ser astuta com as perguntas.
—Ele não estava. Nem na loja foi para escolher os móveis, eu fiz tudo sozinha — exasperou.
— Então minha querida, porque manter algo que já não faz parte da sua vida? — O que quer dizer?
— Você pode desistir ou insistir. Insistir numa parceria que na verdade só existe da sua parte e que sempre te leva as mesmas situações; ou desistir dele e deixa lo ir.
— Deixa-lo ir?
— Deixar ir quem já não fica conosco não é uma tarefa difícil — disse sorrindo. — Mas lhe digo que a decisão de abrir mão de algo que não lhe faz bem, e abrir as portas para um mundo de possibilidades e novas experiências.
— Eu não sei se dou conta — Ivana sentia um frio correr pelo seu corpo, sentiu medo. — O que vou fazer sem ele na minha vida.
— Você já faz querida, todos os dias, como você mesma me contou, mas ainda não se deu conta da sua força e do seu papel em sua vida, você é a protagonista dessa história — disse sorrindo.
— Mas eu o amo?
— Pode até ser, mas me diga: você que experimentou o amor incondicional quando teve seus filhos, você sentiu o que é amor de verdade, é o amor que cuida, que quer o bem, é o amor que preenche. Esse amor está te preenchendo?
— Não. — ela teve que admitir.
— Então será que é amor? — a essa altura, os olhos de Ivana estavam arregalados diante a uma verdade que ela não havia enxergado até aquele momento. Maria deu uma risada gosta e concluiu. — Não duvide do seu amor,
você com certeza o tem em seu coração, só precisa direcionar para a pessoa certa, e a pessoa certa é você mesma!
A empatia certeira de Maria fez Ivana endireitar seu corpo diante de seu poder pessoal descoberto. Um filme rápido passou por sua memória e ela se deu conta de que a vizinha estava certa. Tudo o que ela precisava, ela já possuía, por conta própria.
O que aconteceu depois com Ivana e seu companheiro foi o previsto. A ilusória parceria acabou. Ivana se tornou mais confiante e dona de si.
De tanto se fazer de forte e responsável por si mesma e pelas crianças, aderiu a essa personalidade com maestria e com muito amor. E onde há amor, principalmente o próprio, o Universo se curva para que nos deleitemos em pequenas e grandes alegrias.
Seu companheiro, desperdiçou uma importante lição, e a vida como eximia professora, cuidará de repetir o teste até que o mesmo seja aprovado.
E a querida vizinha Maria, essa senhora que ao acaso passava, se é que existem acasos, ao entrar em casa, sentou-se à mesa e entendeu algo importante:
Há anos atrás quando foi abandonada pelo marido, tendo também dois filhos, se desesperou, foram dias difíceis e sofridos. Ela pensou que não daria conta. Que as portas estavam se fechando para ela e que nunca mais seria feliz.
No entanto, por amor aos filhos, ela se levantou, encarou a dor de peito aberto e vez a única coisa que poderia fazer, transformou a dor em amor.
Assim, cuidou e criou aqueles que lhe ensinaram o que é o amor incondicional. Se fortaleceu, honrou a si mesma, e conseguiu se reerguer. Em seu coração ela sentia que todo sofrimento a tornaram a mulher que ela admirava no espelho, e que via nos olhares de orgulho dos filhos já criados.
Mas ali, sentada, ela aprendeu outra lição.
Que nossas vidas são interligadas, que uma experiência bem vivida, mesmo que tenha causado dor, nos ensina, nos torna melhores como humanos, e que podemos compartilhar lições com o objetivo de fortalecer o próximo. Nada acontece ao acaso, todo acontecimento pode e deve ser aproveitado por uma ou mais pessoas.
Maria entendeu que apenas pôde ter a empatia e a sensibilidade pela vizinha, porque viveu algo parecido, e que sua experiência e aprendizado serviu como gatilho para mudar a vida de outra pessoa, assim como mudou a dela.
Sempre podemos olhar a vida pelo ângulo do sofrimento, se entregando a dor, sentindo-se desamparada por Deus…
…ou podemos fazer dos momentos difíceis um aprendizado, um trampolim para crescermos e nos tornamos indivíduos melhores e deixar transbordar a lição e a satisfação que ela traz quando bem entendida e aplicada.
Basta você escolher o seu ângulo?
Texto escrito por Daniela Rose de Souza – escritora e voluntária Nossa Causa