Já me perguntei diversas vezes porque as pessoas são motivadas a fazer uma doação. Inquieta, investiguei aqui, cutuquei ali, fui tateando as referências bibliográficas que eu já conhecia, perguntando para as pessoas que sabiam, buscando estudos nos centros de filantropia de fora do Brasil e achei um monte de coisas. Fiz reflexões, mas nenhuma delas respondia, para mim, sobre os motivos da doação. Me dei conta que eu ansiava por uma resposta simples e direta para um assunto complexo.
Doar é um enredamento entre motivo, processo e resultado, e cada um destes três aspectos dá corda para boas conversas. Foi ao destrinchar o impulso que dá início a ação de doar, e conectar este impulso no que eu conheço, porque vejo acontecer em mim ou na Acorde, que comecei a encaixar as peças do quebra-cabeça.
Imagine que você chegou em casa, abriu o armário e aquelas coisas abarrotadas te enervaram. Sejam as roupas, os utensílios de cozinha ou os brinquedos das crianças, chega uma hora que bate uma urgência em abrir espaço. A vivência em uma sociedade díspar nos coloca a opção de passar o que sai do armário para alguém que possa querer, precisar ou para uma organização social que possa vender e, com o dinheiro, gerar fluxo de caixa para a causa que defende. Neste caso, no entanto, ação primeira é a de abrir espaço físico e desta nasce a oportunidade de doar o que saiu. O doar é coadjuvante.
Imagine a mesma situação: abrimos o armário e percebemos um monte de objetos guardados ao longo do tempo. No entanto, ao invés de uma ânsia por espaço, nos bate uma dor no coração, uma ansiedade. Pensamos em todas aquelas coisas paradas, sem uso há tempos, enquanto outras pessoas não têm acesso a tantos bens poderiam estar usando. Esta pressão moral pode ser o motivador de uma limpeza urgente. Ou, mesmo que não haja culpa, pode haver uma busca consciente por um equilíbrio social. Nesse caso, o impulso está mais ligado ao campo moral do que material.
Mas em todos os casos houve doação, e uma pessoa ou uma organização se beneficiou. Se olharmos para eles de forma estática, sem olhar a intenção, não percebemos a diferença do porquê. Mas por que o “porquê” importa?
Quando eu recebo um pedido de retirada de doação na Acorde, as intenções se manifestam na forma como a pessoa se coloca. Tem os que dizem “olha, tenho um fogão para doar, tá em ótimo estado, mas tem que ser amanhã”, e no outro extremo tem quem fale “eu fiz uma reforma no meu escritório e pensei em te mandar os móveis, te interessa? Tem tais e tais coisas e posso mandar entregar na Acorde”.
É possível que todas as doações façam sentido e sejam bem-vindas, mas é com este último que eu vou querer me relacionar porque ele está olhando para mim e se colocando ao meu lado. Se eu consigo entender estas diferenças, eu me torno uma criadora de oportunidades de novos parceiros. E, se for o caso, fica mais tranquilo dizer “sinto muito, não podemos amanhã”.
No próximo artigo falarei sobre motivos da doação: o impulso que vem de fora.
Fonte: Confiança, Doação e Gratidão: Forças Construtivas da vida social”, Lex Bos, Ed. Antroposófica, 2010.