Toda mulher tem uma história pra contar. E não, não é nenhum conto de fadas. Não é uma conto de ninar. Pode começar como uma história de amor, pode até ter um final feliz, mas o meio dela é triste. O enredo é repleto de dor, lágrimas e sofrimento. É uma história de terror, com fantasmas e violência. É a história da mãe, da amiga, de uma conhecida, da vizinha. Ou é a história dela mesma.
É SOBRE APANHAR DE QUEM SE AMA. É SOBRE NÃO TER PODER SOBRE SEU CORPO. É SOBRE NÃO CONSEGUIR SE DEFENDER. É SOBRE SE SENTIR CULPADA.
É uma história que dá medo e deixa marcas. No corpo e na mente. É uma história real.
E são essas histórias que hoje escolhemos contar para vocês. Ou melhor, que elas escolheram cantar para o mundo. Vamos falar sobre músicas que tratam de violência doméstica e abuso sexual. Vamos falar de artistas que sofreram com isso e que encontraram na música uma maneira de contar a história da mãe, da vizinha. Ou a sua própria história
Maria da Vila Matilde – Elza Soares
“Mão, cheia de dedo
Dedo, cheio de unha suja
E pra cima de mim? Pra cima de moi? Jamé, mané!
Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”
Uma das maiores vozes femininas desse país, Elza Soares viveu cercada de machismo e sofrimento desde a infância. A cantora nasceu em uma favela no Rio de Janeiro e aos 12 anos foi obrigada a se casar. Aos 13, já era mãe e se apresentava escondida em busca de dinheiro para ajudar o filho doente. Quando completou 21 anos, viúva, tendo perdido dois filhos e com cinco crianças para criar, Elza apostou novamente na sua voz para sustentar a família.
Aos 23, Elza se envolveu com o jogador de futebol Garrincha, que na época era casado. A cantora ficou conhecida como a “amante que acabou com o casamento de Garrincha”, chegando a ser ameaçada de morte e sofrer ataques nas ruas. Um ano depois, casaram-se. Durante os últimos anos de casamento, o jogador batia frequentemente na esposa, chegando a quebrar os dentes dela uma vez. Na época, Elza sofreu calada.
Em 2015, ela lançou o cd “A Mulher do Fim do Mundo”, de onde essa música faz parte. A frase “E pra cima de mim? Pra cima de moi? Jamé, mané” da música, pode ser interpretada como uma referência ao ex-marido, que era chamado de Mané Garrincha.
Till it happens to you – Lady Gaga
“You tell me it gets better, it gets better in time
You say I’ll pull myself together
Pull it together, you’ll be fine
Tell me, what the hell do you know? What do you know?
Tell me how the hell could you know? How could you know?”
“Você me diz que isso vai passar, vai passar, com o tempo
Você diz que vou me recompor
Se recomponha, você vai ficar bem!
Diga-me, o que diabos você sabe? O que você sabe?
Diga-me como é que você poderia saber? Como poderia saber?”
A música foi escrita para o documentário The Hunting Ground, lançado em 2015. O documentário retrata casos de abusos sexuais nas faculdades dos Estados Unidos, que são, infelizmente, bastante comuns. A letra fala sobre como as vítimas de abuso são tratadas, tendo suas histórias e dores diminuídas na maior parte do tempo.
Em 2016, a música foi ganhadora do Emmy na categoria “Música e letra original” e também concorreu ao Oscar na categoria “Música Original de Longa Metragem”.
Lady Gaga já veio a público para contar sobre o abuso sexual que sofreu aos 19 anos por um produtor musical e como isso a mudou para sempre. Hoje em dia, com 32 anos, a cantora ainda se sente culpada.
Praying – Kesha
“You brought the flames and you put me through hell
I had to learn how to fight for myself
And we both know all the truth I could tell
I’ll just say this is I wish you farewell”
“Você trouxe as chamas e me fez passar pelo inferno
Eu tive que aprender a lutar por mim mesma
E nós dois sabemos toda a verdade que eu poderia dizer
Mas vou apenas dizer que isto é o meu adeus a você”
Em 2014, a cantora Kesha acusou o produtor musical Dr. Luke, de abuso sexual. Em seu processo, ela contou que ele a obrigava a consumir bebidas alcoólicas e a usar drogas para que ela não tivesse como se defender. Além de estuprá-la, o produtor também a agredia fisicamente e psicologicamente.
No ano de 2016, Kesha perdeu o processo contra o produtor, sendo obrigada a continuar seu contrato na Sony Music e consequentemente obrigada a conviver e a gerar lucro ao seu abusador. Durante essa época, a cantora teve apoio de diversas outras artistas, assim como dos fãs, que lançaram a campanha #FreeKesha no Twitter.
Em 2017, a Sony Music afastou o produtor. E nesse mesmo ano, Kesha lançou a música “Praying”, continuando assim, seu contrato com a gravadora. Dr. Luke está processando a cantora por difamação e quebra de contrato e o caso ainda segue sem conclusão.
100% Feminista – MC Carol e Karol Conka
“Presenciei tudo isso dentro da minha família
Mulher com olho roxo, espancada todo dia
Eu tinha uns cinco anos, mas já entendia
Que mulher apanha se não fizer comida
Mulher oprimida, sem voz, obediente
Quando eu crescer, eu vou ser diferente”
A música lançada em 2016, retrata o lado feminista da funkeira MC Carol, conhecida por suas letras com duplo sentido ou temáticas sociais. Em 2018, a MC foi vítima de violência doméstica pelo ex-namorado. A funkeira conta que o ex-companheiro entrou em sua casa de madrugada, com um facão, decidido a matá-la. Ele foi preso em flagrante. A funkeira teve um relacionamento de 9 anos com o agressor e conta que, na última vez em que se separaram, ela chegou a entrar com o pedido de medida protetiva contra ele, mas desistiu no meio do processo.
Em 2018 a cantora se candidatou a deputada do Rio de Janeiro, com pautas direcionadas ao feminismo e ao racismo, mas não conseguiu se eleger.
Disque Denúncia – Nina Oliveira
“Ô moça, ontem eu tava caminhando
Perto daquela praça e um homem me parou
E me deixou marcas
Mas não eram de batom
Não eram de batom
E eu não sou a culpada
Pelo estupro, a pedrada
Pelo meu sangue que vaza
Pela minha pele que racha”
Nina Oliveira é uma jovem cantora e compositora, que traz em suas músicas-poesias questões sociais, de gênero e raciais. Nessa canção, Nina aborda o assédio e a violência contra a mulher, fazendo analogias para se fazer clara, mas não da maneira comum. Ela retrata com poesia o assédio que muitas mulheres sofrem nas ruas e conta, também, parte da sua história.
Cold Case Love – Rihanna
“On my roof
Dark and I’m burning a rose
I don’t need proof
I’m torn apart and you know
What you did to me was a crime
Cold case love
And I let you reach me one more time
But that’s enough”
“No meu telhado
Está escuro e estou queimando de amor
Eu não preciso de provas
Eu estou despedaçada e você sabe
O que você fez a mim foi um crime
Caso frio de amor
E eu deixei você me atingir mais um vez
Mas agora chega”
Em 2009, a cantora Rihanna foi agredida pelo seu então namorado, Chris Brown, após uma festa. Brigas entre os dois eram normais, segundo ele, mas o mesmo diz que perdeu o controle no dia e que sentiu-se tão culpado a ponto de pensar em suicídio. O cantor foi condenado a cinco anos de liberdade condicional e 180 horas de serviço comunitário, e a cantora conseguiu uma ordem de restrição contra ele.
Em uma entrevista, a cantora comentou sobre sua dor: “o que os homens não compreendem quando batem em uma mulher é que o rosto, o braço quebrado, o olho roxo vão se curar. Esse não é o problema. O problema é a ferida por dentro. (…) Você lembra, você relembra o tempo todo. Isso volta para você, quer você queira ou não. E é doloroso”.
Coração pede socorro – Naiara Azevedo
“Ah, esse amor
Deixou marcas no meu corpo
Ah, esse amor
Só de pensar, eu grito, eu quase morro”
A cantora Naiara Azevedo ficou conhecida, em 2011, por sua música “Coitado”, uma resposta a música “Sou Foda”, dos Avassaladores. Desde então, a cantora trouxe mais hits que tratam sobre o empoderamento feminino. Em 2018, no Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, Naiara lançou o clipe de “Coração pede socorro”, em conjunto com o Ministério dos Direitos Humanos, como parte da campanha “Você tem Voz”, que buscava a divulgação do canal de denúncias Ligue 180.
I’m Ok – Christina Aguilera
“It’s not so easy to forget, all the marks you left along her neck
When I was thrown against cold stairs
And everyday afraid to come home in fear of what I might see next
Bruises fade father but the pain remains the same”
“Não é tão fácil esquecer, todas as marcas que você deixou no pescoço dela
Quando fui jogada escada fria abaixo
E todos os dias com medo de voltar para casa
temendo o que poderia ver em seguida
Contusões desaparecem, pai, mas a dor continua a mesma”
A cantora pop compôs essa música como um desabafo aos abusos que sofreu e que viu sua mãe sofrer nas mãos de seu pai. Em entrevista, Christina revela: “vi a minha mãe ser submissa. Ela tinha que ter cuidado com o que dizia ou era espancada”.
A mãe da cantora conta que, quando a filha tinha 4 anos, encontrou-a com o rosto sangrando quando chegou em casa. Segundo a menina, o pai queria dormir e ela teria feito barulho.
Desde que lançou essa música, Christina tem tomado frente em diversos movimentos contra violência doméstica. Em 2014 ela fez parte da campanha HopeLine, criada por uma operadora telefônica dos EUA, que busca prevenir os casos de violência doméstica no país.
Ele bate nela – Simone e Simaria
“E agora ele bate, bate nela
E ela chora
Querendo voltar pros braços de sua mãe
E agora
Eu tô sem saída
E se eu for embora
Ele vai acabar com a minha vida”
A música foi lançada em 2014 e hoje tem mais de 60 milhões de acessos no Youtube. A cantora Simaria disse que compôs essa música pensando na realidade que muita gente vive. Ela diz que queria muito falar sobre violência doméstica em suas músicas, mas não de uma maneira muito pesada, então escolheu escrever “Ele bate nela”. A repercussão não acontece só no Youtube, acontece também através de agradecimentos de fãs que, aos finais dos shows, costumam comentar como a música as libertou.
As histórias dessas mulheres, famosas ou não, precisam ser contadas. Para que outras mulheres também tomem coragem e denunciem. Para que elas não se sintam sozinhas, pois não estão.
A luta pelo fim da violência contra a mulher segue e continuará seguindo, até que todas sejam, enfim, ouvidas e livres.